Pedro Tamen: o caminho que nunca percorri

10.

Ardes-me no peito onde a custo
o meu amor perpassa, e vai até
às loucuras do corpo
e às agruras da alma.
Ardes-me no minuto, no segundo,
na hora amaciada por olhos entrevistos,
ardes-me no sangue obstruído
e na certeza muda que me diz
que o coração existe.

16.

Troco-me por ti.
Na brasa da fogueira mal ardida
renovo o fogo que perdi,
acendo, ascendo, ao lume, ao leme, à vida.

17.

Devagar te amo, e devagar assomo
os dedos à altura dos olhos, do cabelo
dos anéis de outro turno, que é só meu
por querê-lo, meu amor, como a ti mesma quero
nos tempos de passado e sem futuro.

Devagar avanço um dealbar de dias
que vida seriam – mesmo que morto, à noite,
eu voltasse amargurado mas presente,
calado e quedo, e devagar amando.

60.

Deitado ainda, já nem sei que pé,
que força ou rasto ainda me sustente;
persisto e visto a capa que relê

as palavras antigas do presente,
as palavras, as figas: rodapé
do amor a voar, além, ausente.

61.

Pois é estreita a passagem, já sabia,
para quê lá voltar, ao que não há,
onde não estou nem estás, e moradia
do nada a nado, susto e patamar
onde me esperas em nenhum lugar.

62.

Corro, feito merda, para os braços
teus, inexistentes, são-não-são,
pisco os olhos segados mas não cegos,
estremunhado de um sono sonegado,
abano abananado, meço-me, estremeço-me
(não é o meu este fato, pesa, é do adelo),
será que ainda corro, ou morro, isto que é,
que nave me transporta, e a que porta?

E no baloiç’oiço a musa infusa,
acordo enfim plantado onde não estou.

© Fotografia Jornal Público

Viagem entre poemas, flutuações palpitantes entre distintos estados que o homem estabelece consigo mesmo o com todas as realidade por si recriadas, nomeadamente, o amor. Estados concomitantes que iniciam com uma presença e findam com esta transformada numa ausência, onde alguém espera o mesmo sentido, num presente, que é um “nenhum lugar”, um local onde já ninguém está, onde o inexistente pesa e subsiste em direção a algures que é tudo menos uma certeza. Um caminho, seguramente, de aporias por preencher. Rua de Nenhures, é uma obra de poesia, mas é, simultaneamente, uma viagem que vale a pena percorrer!

Pedro Tamen (1934-2021) foi um dos mais importantes poetas portugueses contemporâneos. Destacou-se como tradutor, crítico literário e figura extremamente influente no mundo editorial português. Deixou um legado significativo na poesia contemporânea portuguesa alienando uma linguagem densa e reflexiva a uma ligação profunda à experiência humana das “coisas vividas”. Dedicou uma vida à cultura e promoveu um inúmero conjunto de projectos significativos no universo cultural português: foi fundador da revista O Tempo e o Modo, do Centro Cultural de Cinema e da colecção Círculo de Poesia que dirigiu na Morais Editora e administrador da Fundação Calouste Gulbenkian até 2000. Autor imensamente traduzido e galardoado ao longo da sua carreira.

Pedro Tamen usou a poesia como forma de expressão dos dilemas que assolam o humano. Com mestria linguística, combinou como poucos, uma profunda reflexão filosófica com a capacidade estética de dizer algo de uma forma poética.

Sobre Pedro Tamen escreveu António Ramos Rosa em 1991:

“E que a liberdade, que em si mesma é um espaço de nada, cria a distância em relação ao real e assim permite a afirmação vital contra o destino e a defrontação com o trágico e a assunção criadora. A sua poesia tem a urgência de um grito, mas este grito é permeado pela espessura das figurações vivas de uma palavra aberta em que ressoam as vozes da terra misturadas aos clamores do sangue.”

20910

Sobre o Autor

Ivo Aguiar

Leitor omnívoro. Escritor independente. Filosofia, Poesia e Arte em Geral.

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