Na Biblioteca
O que não pode ser dito
guarda um silêncio
feito de primeiras palavras
diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,
quando já a incerteza
e o medo se consomem
em metros alexandrinos.
Na biblioteca, em cada livro,
em cada página sobre si
recolhida, às horas mortas em que
a casa se recolheu também
virada para o lado de dentro,
as palavras dormem talvez,
sílaba a sílaba,
o sono cego que dormiram as coisas
antes da chegada dos deuses.
Aí, onde não alcançam nem o poeta
nem a leitura,
o poema está só.
E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.
Manuel António Pina, Poesia, Saudade da Prosa, Assírio & Alvim
Este é um daqueles poemas que gosto de roubar para mim: um pedaço singular de beleza deixado à disposição de todos. Que alcance, que universalidade, que sentido transcendental, que cruzamentos poéticos, que leituras e paralelismos trespassam cada sílaba até formar o todo que é este poema! Obrigado ao Manuel António Pina por nos ter deixado tantos poemas belos.
21006
Sobre o Autor
Ivo Aguiar
Leitor omnívoro. Escritor independente. Filosofia, Poesia e Arte em Geral.