Juan Vicente Piqueras, O Quarto Vazio

O Quarto Vazio

Juan Vicente Piqueras apresentou na 25ª edição das Correntes d’Escritas, o seu segundo livro de poesia publicado em Portugal, com o nome O Quarto Vazio, depois de, na mesma editora, ter publicado em 2016 uma antologia de poemas com o título Instruções para Atravessar o Deserto.

O livro inicia-se com um poema que lhe dá título e estabelece, desde logo, a atmosfera pela qual o leitor poderá conduzir-se. À primeira vista, o nada, aparece-nos no plano conceptual como sendo sempre alguma coisa: pó, raio de sol, silêncio, buraco de um prego, ausência de um quadro… Mas o nada não é apenas aquilo em que se pode converter, pelo seu rasto, pela memória do que foi. O nada é também condição de possibilidade do inefável. Segundo o autor, “a poesia é a arte de saber ver e nomear tudo o que existe num quarto vazio”. Aquilo que, aparentemente, não existe, “o que não está lá, o que não vemos, está mais presente do que o que está à nossa frente”. Piqueras parte sempre de um vestígio mínimo de ser e converte, através da poesia, esse inefável ausente num modo de ser completo e real. Com a poesia passamos do vazio do quarto para um real completo e belo.

Piqueras nasceu em Espanha, mas vive fora deste país há mais de 40 anos. Viveu em Roma durante 19 anos, mas também em França, na Grécia, na Argélia e em Lisboa durante 2, onde foi Director de Estudo do Instituto Cervantes. Considera-se filho de Fernando Pessoa. Assume uma epifania quando descobriu o poeta português e entende-se a si mesmo, um heterónimo póstumo.

Para o poeta a arte humana (filosofia e religiões incluídas) nascem da consciência de que a vida nos escapa. Caminhamos, inevitavelmente, para o esquecimento, como a água que nos corre entre as mãos. “Escrevemos para deixar testemunho deste milagre fugaz que é a vida”.

A poesia é a arte de caçar instantes, para salvar o que vivemos do esquecimento futuro:

Sou um andorinhão velho, já cansado
de voar sem poder pousar em nenhum ramo,
em nenhuma alma. Caço insectos, luz.
Caço instantes no voo e depois canto.

Há anos que é assim.
Desde que deixei o ninho não deixei
de voar sem descanso, de tentar regressar
ao buraco inicial, perene perigo,
dia e noite no ar, dia e noite
sem um onde, dormindo sem parar de voar.

Uma atitude incansável e infinita, uma forma de vida que é, simultaneamente, um combate contra a nossa própria condição: do nada vimos e ao nada regressaremos através do esquecimento. Entre a vida e a morte as fronteiras são ténues. Mais do que uma barreira, Piqueras encontra uma porta aberta enquanto fronteira entre a vida e a morte e com esta subtileza fala-nos de (e para) ambos os lados.

Esta sua obra, editada de forma bilingue pela Asírio & Alvim (2024) está dividida em 2 grandes partes: “Já Não” (Ya No) e “Ainda Não” (Todavía No) e ensina-nos o espanto do humano enquanto ser que se situa entre dois tempos/espaços separados por uma cortina invisível, entre o que Já Não é mas continua, de certa forma, e para sempre, a marcar o mundo real e conceptual de todos os que ainda vagueiam por cá e, portanto, Ainda Não se foram. O ser humano é um ser de tensão entre dois pólos e Juan Vicente Piqueras apresenta-nos, através da poesia, uma diluição entre realidades falando-nos, por vezes, ora directamente do mundo dos mortos, ora de um espelho que reflecte apenas o passado, de um universo onde aquilo que já não é, continua a ser de alguma forma, alguma coisa.

PROPOSTA DE EPITÁFIO

Para Fernando Aramburu

Em pequeno fui imortal. Adolescente,
revoltei-me contra o que agora sou.
Em jovem fui selvagem. Fiz sofrer
e sofri muito mais do que queria.
Pouco a pouco a morte (era semente
e parecia alheia) foi crescendo
dentro de mim, feliz, recuperando
aquilo que era seu, e só muito tarde
soube o que era a vida. Na velhice
beijava a água e abraçava o ar
como o doente abraça a esperança
ou o náufrago, a espera. Nunca o mundo
foi tão belo como antes de eu partir.
Agora já não existe. Agora sonho
que o que já não sou volta a nascer.

Com o desenrolar da narrativa poética não faltam alegorias, evocações e elegias além dos já mencionados epitáfios: os mortos vai ficando entre nós, contrariamente aos vivos, que se ausentam. Uns e outros disseminados num tempo e num lugar entrecruzado aparecem quanto mais se ocultam no nevoeiro da realidade. Por isso, o Já Não, dá lugar a um Ainda Não, um espaço ontológico onde o devir é chamado ao presente pela potencialidade infinita daquilo que ainda não é.

ENSAIO GERAL

Deixei de fazer a barba para que cresça branca.

Não corto as unhas.

Hoje jejuei.

Habituo-me a pensar em mim no passado.

Caminho lentamente pela rua.

Olho as crianças. Parecem-me lágrimas.

Não ligo a ninguém. Calo.

As portas não me servem.

Ligam-me e não estou.

Escrevo e rasgo logo o que escrevo.

Sou o vazio que ocupo.

Preparo-me.

Aprendo pouco a pouco a desaparecer.

Súmulas epitáficas:

Para o poeta a arte humana (filosofia e religiões incluídas) nascem da consciência de que a vida nos escapa. Caminhamos, inevitavelmente, para o esquecimento, como a água que nos corre entre as mãos. Escrevemos para deixar testemunho deste milagre fugaz que é a vida.

A poesia é a arte de caçar instantes, para salvar o que vivemos do esquecimento futuro.

“A poesia é a arte de saber ver e nomear tudo o que existe num quarto vazio. Também a arte de cantar o que não está lá. Muitas vezes, o que não está lá, o que não vemos, está mais presente do que o que está à nossa frente. A vida adora paradoxos” e Juan Vicente Piqueras adora converter muitos desses paradoxos em poesia.


Ivo Aguiar

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Sobre o Autor

Ivo Aguiar

Leitor omnívoro. Escritor independente. Filosofia, Poesia e Arte em Geral.

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