Humanidades, crítica e poesia…

A crítica ao espelho – Ler de outra maneira

Manuel Frias Martins (MFM) é presidente da Associação Portuguesa de Críticos Literários (APCL) e professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. MFM apresenta-nos o acto de leitura crítica como “experiência dinâmica do pensamento” onde o autor deve ser sempre considerado “como sendo uma projecção do texto e não o contrário”.

Num belíssimo ensaio sobre crítica literária, MFM, faz uma correlação entre a crítica literária, a passagem do tempo, a ideia de humano e a forma como tudo isto se interrelaciona enquanto as convenções mudam e os gostos se alteram: a “crítica literária é um fantasma que vagueia nas sombras do esquecimento”, hoje e sempre. Assume este papel de forma exímia e esclarecedora. “E, no entanto, o crítico escreve. Escreve, escrevendo-se nos comentários que escreve. Lança olhares próprios e únicos sobre as palavras [cumprindo, no fundo, o objectivo máximo da criação artística], conversa com seres que não existem, cruza as suas emoções e sentimentos reais com emoções e sentimentos irreais, dialoga com ideias desprovidas de contexto observável ou sem uma origem definida.”

MFM apresenta-nos uma narrativa de esperança onde a poesia aparece como estratégia complexa do humano perante a vida:

«É a poesia que hoje tem a responsabilidade de manter vivas as qualidades mais intensas da linguagem e dos conteúdos imaginativos com maior poder simbólico».

«Ao resistir ao desperdício do eu, a poesia constitui a expressão mais viva da angústia humana que cruza de um modo único a vida a morte».

«A captação imediata de um momento de felicidade ou tristeza através de uma imagem poética singular, equivale a um clarão de inteligibilidade da experiência que nenhum outro discurso humano consegue igualar».

«Nenhum outro discurso humano diverge de um modo tão radical das práticas quotidianas que nos ligam como seres sociais e culturais. Essa, que é uma das suas riquezas, é também um dos maiores perigos que a poesia acaba por correr num tempo marcado pelo conforto do alheamento, pela informação mediática massificada e ignorante, pelos entretenimentos intelectualmente amorfos».

«A poesia exige esforço intelectivo, bem como cumplicidade cultural e crença na importância da aparente inutilidade de um discurso repleto de imaterialidades e fantasias».

A poesia aparece ao humano como um privilégio da existência. A poesia, pela sua leitura e pela sua escrita, aparece, como o epílogo da criação humana enquanto manifestação cultural da vida e das relações humanas: com o mundo exterior, com os outros e consigo próprio.

MFM coloca a crítica literária no núcleo duro das humanidades e sublinha a necessidade da diversidade no que diz respeito à interpretação, por oposição àquilo a que chama de “método derivativo de comentário crítico”: o autor citado não deve ser avalista do conteúdo da crítica. O crítico não pode cair na encruzilhada linguística que o real lhe exige; o crítico deve procurar sempre a liberdade hermenêutica de ler o autor de outra maneira, colocando-o ao serviço de “novos empreendimentos do pensamento”:

«Se queremos recuperar a literatura como forma de conhecimento e as humanidades como campo discursivo de liberdade e criatividade, então é preciso não dar ao autor todas as chaves de abertura dos seus textos»

É sempre preciso ler de outra maneira e a divergência da interpretação é uma posição hermenêutica necessária para a evolução dinâmica do pensamento. Sem esta condição o pensamento evolui unilateralmente pela cartilha de alguém que ditará a sentença das bases exegéticas de um sentido único para a vida e para a realidade.

MFM evoluiu no seu ensaio apresentando um paralelo interessante entre a corrente estruturalista pós-moderna dos anos 60 e 70 e as tendências vitais da sociedade actual.

«A questão que se deve colocar já não é a da autonomia estruturalista do texto enquanto linguagem, mas sim a do papel criativo do texto enquanto lugar de invenção do mundo num tempo marcado menos pela palavra escrita e mais, muito mais, pelas trajectória da imagem numa cultura de ecrã. Pouco disponível para as virtudes da reflexão demorada que a melhor literatura impõe aos seus leitores, a cultura de ecrã, aliada à vertigem tecnológica, influencia fortemente o modo desconfiado como o campo das humanidades é hoje compreendido pelo aparelho político, educativo e jornalístico».

«Seja qual for o futuro que aguarda a literatura, julgo que continua a ser necessário insistir numa concepção da literatura como forma de conhecimento. Nesse registo, o que interessa é menos o texto considerado em si mesmo como linguagem ou construção narrativa, e mais as descobertas de conhecimento que o texto provoca no leitor e no crítico que dele se aproxima para o comentar e dar-lhe um rumo de entendimento tão estimulante quanto possível. Ler de outra maneira é, por isso, uma inevitabilidade para quem se interessa, de facto, pela permanência da literatura no imaginário da cultura entendida na sua multiplicidade de práticas humanas».

A atitude crítica perante um texto pode ser entendida como uma atitude crítica perante a vida e a contínua enxurrada de opiniões que a mesma nos impõe a um ritmo frenético. Entender esta atitude como base de conhecimento, onde as humanidades, se verticalizam como pilar fundamental da vida é, no mínimo, uma leitura confortante, para quem acredita no poder da palavra e no seu sentido múltiplo e infinito na relação que o humano estabelece com o mundo, com o outro e consigo mesmo.

 


Ivo Aguiar

Sobre o Autor

Ivo Aguiar

Leitor omnívoro. Escritor independente. Filosofia, Poesia e Arte em Geral.

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