Fernando Grade, o maldito desconhecido
(1943-2024)
Estreou-se na literatura aos 19 anos com Sangria e faleceu em Junho de 2024, com 81 anos, e num quase completo anonimato. São praticamente nulas as referências a este excêntrico poeta não apenas ao nível geral da cultura como também ao nível do universo específico da crítica e divulgação literárias. E, no entanto, Mário Cesariny classificou-o como “excepcional”, um “poeta de corpo presente” (Cadernos Ibéricos, nº 1, 1963).
De forma propositada ou não, Grade primava por um desleixo no vestir, sempre apresentável com sobretudo coçado, boina basca preta, barba sebenta de dimensões insuportáveis. Autor das suas próprias edições MIC (Movimento de Intervenção Cultural) denotadas pela enorme falta de gosto e sentido estéticos, Grade vagueava pelas ruas e escolas numa tentativa de dar a conhecer os seus poemas. O MIC rapidamente resvalou repulsa não gracejando as graças dos jornais e editoras da época e rapidamente se converteu num silêncio e solidão com que nos acabou por deixar.
Ruy Ventura descreve-o como alguém com “vontade perene de ir às inaugurações onde adregasse haver comes-e-bebes, para poupar em refeições, porque vida de poeta, por mais que se desunhe a propagandear-se e a vender poemas, sempre está às portas duma barriga a dar horas.” Com um humor desconcertante, Joaquim Moedas Duarte descreve-o como “inventor de ditos rápidos e certeiros, por vezes sarcásticos ou humorísticos. Como aquele que uma vez me atirou, quando me queixei das muitas actividades culturais, e dos muitos livros a que não conseguia dar vazão:
– Olha, pá! Também me queixo do mesmo: não há tusa para tanta musa!”
António Cândido Franco destaca-nos de forma repentina um dos seus poemas em 14 versos:
À porta de Rimbaud arde um chocalho
como flautas rasgadas de beleza
e as musas são despidas no soalho
– o pão: espezinhado sobre a mesa.Sibila de uma França galinácea
que semeia rosinas e chacais
entre os cravos, os goivos e as acácias.Um corpo masturbado nos pinhais…
Por trás da neve, foste um bom profeta,
morango, sangue, e cadela ruiva,
astros, astros, cidades de cal preta.Quiseste ser em ti a própria noiva.
Boca de morsa velha – o teu desejo…
À porta de Rimbuad é que me vejo…
Só a poesia faz o poeta. A poesia não são as notícias do jornal, não são os prémios, não são o lastro de visibilidade que as máquinas de propaganda de hoje nos querem “vender”. Em certa medida, a poesia, unida pelo peso da palavra pode ser, mesmo, um exercício contra tudo isso. Homens com o Grade podem até ser loucos, mas a poesia nunca lhes poderá virar as costas.
Com melhores palavras descreve António Cândido Franco a forma verdadeira, pura e única como o poeta anónimo se relaciona com a poesia:
“Calhou a este homem que assinou Fernando Grade ter um destino involuntário e trágico, desses que são já improváveis ou mesmo impossíveis numa literatura adulta, a trabalhar para a indústria cultural, mas calhou-lhe também ser um autêntico prestidigitador do fogo, que foi capaz de brincar com os incêndios mais velozes com uma mestria tantas vezes admirável.”
Apesar de tudo, Fernando Grade, não foi um poeta completamente anónimo, mas através dele é possível homenagear um vasto conjunto de pessoas que dedicam uma grande parte da sua vida à poesia, à arte e à cultura em geral. Pessoas que diariamente sentem o peso de cada palavra e convertem o seu sentido num esboço de algo que, um dia, pode vir a ser um poema. Pessoas que, no anonimato completo, sentem o universo em cada pedaço da sua escrita. A todas essas pessoas eu estou infinitamente grato por alimentarem involuntariamente uma ideia de civilização que, com o tempo, tenderá a perder-se.
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Ivo Aguiar
21018
Sou de Sāo Joāo do Estoril cruzei-me várias vezes com esta figura entre hierática e clownesca no comboio.Quando soube que era um poeta senti uma espécie de orgulho: eis aqui o poeta da minha terra. Ao retrato da boina e etc. este sempre foi o senhor dos saquinhos. Andava sempre cheio de sacos de plástico e recordo uma vez que o comboio falhou e tínhamos de ir à Marginal apanhar a camioneta. Vem aquele senhor correndo para que o condutor nāo arrancásse com toda aquela parafernália. Em suma, bem haja ao Fernando Grade por escavar um túnel de poesía no meu coraçāo, sem o saber.Abraço.