A forma como jovens e adultos interagem hoje uns com os outros passa inevitavelmente por um filtro que digitaliza, constantemente, o real. Para além das interacções sociais que cada um de nós tem de forma directa, ao longo do seu dia, a discursividade está paulatinamente a mudar para um quadrante em que a vida se paraleliza num universo virtual e comummente aceite por todos. Continuamos a falar uns com os outros em discurso directo, pais com filhos, empregados com patrões, funcionários com clientes, mas, efectivamente, cada vez menos. A fatia temporal reservada à palavra é substituída continuamente pelo tempo que cada ser humano dedica ao seu ecrã. Pais falam cada vez menos com os seus filhos, e estes esgotam o seu tempo nos feeds do seu telemóvel; casais partilham cada vez menos palavras directamente sendo as suas conversas regularmente interrompidas por frases como “Desculpa, não ouvi, estava só a responder a esta mensagem urgente…”; nas relações laborais o trabalho está quase digitalizado a 100%: respondemos a e-mails, enviamos mensagens, e o tempo de reunião onde todos estão fisicamente presentes é cada vez menor.
O mundo mudou. Noutros artigos publicados, relembro sempre que esta mudança tem implicações profundas não apenas ao nível do relacionamento, mas essencialmente, ao nível da percepção daquilo que é a liberdade individual e da forma como esta influencia directamente ou por negligência a consciência que cada ser humano tem perante a realidade, perante o outro e perante si mesmo. A civilização do livro está efectivamente hipotecada: a humanidade, que através do espírito reformista do iluminismo acreditou sempre que o ser humano, por força da razão, e pela pedagogia da acção estrutural da sociedade, podia evoluir, criar padrões de avaliação e metodologias de seriação rumo a um estado de liberdade contínua, encontra-se perante uma mudança de paradigma existencial nunca outrora vista. A noção de homem está para a sociedade do século XXI como a noção de ciência estava para a sociedade do século XIV. O caldeirão pseudo-cultural alimentado pelas redes sociais e exponenciado pelas diferentes mutações da IA, vai converter o humano numa figura ainda por definir. A figura do sábio, daquele que procura o saber, do académico que dedica a sua existência em saber mais em prol de uma humanidade por vir é substituída paulatinamente pela figura do homem rico e do influenciador digital. Este é o estado de arte, o padrão de beleza e modelo de seriação inteligível que a grande maioria dos jovens procurarão numa sociedade em que o livro foi substituído pelo ecrã e pelo seu conteúdo: um feed desenfreado e aleatório ao serviço de uma estrutura plutocrata que pensamos controlar mas que, na realidade nos aliena. Como em todos os tempos, as excepções, obviamente, continuarão a existir e a servir de mote resiliente para todos os que heroicamente continuarem a dedicar-se ao estudo antropológico desta mudança atómica civilizacional.
Neste caldeirão é cada vez mais frequente, não apenas a influência digital nas interacções sociais, como também uma constatação da dificuldade contínua e crescente em entender, em interpretar, em descodificar aquilo que é lido. A palavra lida entra no quadro mental desta nova geração digitalizada quase como um corpo estranho. Será cada vez mais difícil explicar a um jovem que sem a intermediação da palavra o humano reduz-se a uma insignificância absurda. Será ainda mais difícil explicar que, com palavra, também. Pensamento e Linguagem, relações filosóficas ferozes que nos abririam os horizontes para uma exploração temática esteticamente relevante, neste domínio. Mas não iremos por aí. Fixemo-nos na importância da palavra e na relação que a sua interpretação assume na definição e constituição do humano.
A palavra, apesar de insuficiente, – e tantas vezes deficitária – é sempre um veículo privilegiado para o humano expressar as suas emoções, frustrações, sentimentos… Existem outros veículos, uns mais civilizados que outros. A pintura, a música, a escultura e tantas outras formas de manifestação artística permitem ao ser humano manifestar o estado do seu interior, o universo que na língua alemã conseguimos facilmente traduzir pelo termo “Befindlichkeit”, mas nenhum como a palavra o consegue fazer de forma tão sucinta e pragmática. Num mundo virado para o digital e para os parcos segundos com que cada um se depara com frames aleatórios, o vocabulário que os jovens dispõem é cada vez mais restrito. Quem nunca experienciou o caso de usar uma palavra não compreendida por alguém? Todos. Mais estranho e também mais comum, é usarmos um sinónimo para explicar uma palavra, seguida de um sinónimo do sinónimo e mesmo assim, continuar à procura da forma correcta de comunicar através de um signo um determinado significado. Comunicar com alguém com restrições extremas ao nível do vocabulário é como comunicar com alguém que não domina o nosso idioma. Em vão, qualquer dia teremos de recorrer à mímica para comunicar um pensamento, uma ideia, um sentimento. A perda progressiva de vocabulário pode gerar um problema de comunicabilidade entre gerações. Não estamos a falar apenas de uma mutação de vocabulário, mas sim da instauração de um vazio de significados outrora ocupados pelo todo que cada palavra encerra.
Os professores sempre assumiram um papel fundamental nesta lógica de conversão dos indivíduos em seres humanos mais capacitados do ponto de vista de expressão linguística. A escola, que outrora tinha um papel relevante nesta transição de enriquecimento vocabular, poderá ficar refém, no futuro, de um corpo docente que será ocupado pelos jovens de hoje, que em nome do pragmatismo utilitarista da sociedade digitalizada, não terá consciência desta mutação. Pais e professores são cada vez mais alienados à lógica dos ecrãs: mais feed, menos leituras, mais redes sociais, menos livros, mais social media, menos comunicação social. E com esta lógica, a geração do vocabulário alargado será cada vez mais um nicho nas prateleiras vintage de uma sociedade digital. Sem vocabulário, sem palavras, a capacidade de expressão civilizacional está cada vez mais comprometida.
Em busca das palavras perdidas, Dora Gago, explica-nos de uma forma muito sucinta esta preocupação e fatalidade. “Devido a esta dificuldade de expressão, muitas vezes é a violência e agressividade que servem como meio de comunicar, numa reminiscência de uma era remota, anterior ao uso da palavra. E isto preocupa, pois quem não dispõe de vocabulário não pode argumentar, negociar, fazer valer os seus argumentos nem a sua posição. E todos sabemos que a leitura é a fonte maior de aquisição de palavras, de ideias, o melhor alimento para o pensamento, para a alma, o fertilizante da criatividade, da imaginação. A partir do momento em que essa fonte seca, é o deserto que se expande, a devorar, a ocupar. Assim surge a violência como uma peste, uma praga latente para colmatar o espaço vazio da ausência da palavra. Em pleno século XXI, parece que o ser humano tende, mais do que nunca, para a barbárie, para um inusitado regresso à pré-história, a um tempo de grunhidos e guinchos, anterior a uma linguagem articulada.”
Esta alegada tendência agressiva que ejacula da ausência de palavra atinge diariamente proporções inauditas na sociedade contemporânea não apenas ao nível do comportamento individual como também ao nível das decisões políticas ao mais “alto” nível: basta ver a legitimação que a maioria dos eleitores americanos diligenciaram relativamente ao comportamento agressivo, violento e esteticamente problemático do episódio da Invasão do Capitólio a 6 de Janeiro de 2021, tendo reelegido, posteriormente, o mentor do ataque nas eleições de Novembro de 2024.
Não estamos perante uma guerra de palavras, estamos perante uma guerra pela palavra! Unidos em nome de uma civilidade criada e legada não devemos desvigorar a importância que a palavra assume na constituição daquilo que é o conceito de humanidade pelo qual lutamos. Lutar pela palavra é fomentar todos os dias o gosto pela leitura; é alertar todos os dias para o peso concorrencial desmedido que as redes sociais assumem no controlo da vida das pessoas. Pela palavra, usando a palavra e, em noma da palavra, lutemos juntos. Sem esta luta podemos estar a hipotecar não apenas o método, mas também o conteúdo dinâmico e axiológico de conceitos que, sem o poder da palavra, desvanecem ao primeiro sopro: justiça, fraternidade e liberdade.
[texto publicado sem qualquer revisão ortográfica e escrito ao abrigo do anterior acordo ortográfico]
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Ivo Aguiar
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Sobre o Autor
Ivo Aguiar
Leitor omnívoro. Escritor independente. Filosofia, Poesia e Arte em Geral.