Deus na escuridão do homem
Valter Hugo Mãe (VHM) dá-nos a conhecer a sua obra mais recente, Deus na escuridão, tendo-a como mote para uma reflexão pertinente sobre a arte e a vida em geral na sua relação com o mundo que nos rodeia. Na sua crónica quinzenal no JL, a sua obra, e a obra de arte em geral, é apresentada como uma possibilidade infinita de cidadania diversa. Refere-nos o autor que através dos clássicos dos “grandes livros” o universo é-nos dado a conhecer não apenas por aquilo que parece, mas, sobretudo, pela infinita possibilidade daquilo que pode vir a ser.
“Na juventude, aprendendo a ler os grandes livros, convenci-me de que os maiores autores nos propunham uma espécie de cidadania, uma deslocação para dentro de seus universos que nos inventava um modo de ver e, mais ainda, um modo de ser. Sobretudo com Kafka, o impacto do encontro de sua linguagem, o imaginário do intrincado, a contingência de estar bastante perdido e à mercê, criou em mim uma identificação que era mais do que fascínio pela arte, pela ideia e pensamento. Era uma alteração na minha pessoa, uma mudança que me oferecia uma condição lunar, retirada, que gerava um estrangeirismo em mim. Passava a ser de longe. Ao menos, em parte, era de longe…”
A literatura tem um poder inigualável de nos abrir uma página de sentidos infinitos que se podem converter nos mais diversos modos de ser e sentir a realidade. Com a literatura, e a arte em geral, o mundo não é apenas aquilo que é, mas, essencialmente, o sentido profundo que a imaginação nos permitir.
“Paulatinamente, isso foi sendo mais e mais claro no meu espírito. Que os autores convidam a que sejamos de identidades mestiças, culturas híbridas e indefinidas que tantas vezes existem apenas na obra de arte. Não estão nos mapas, não se lá pode ir por terra, por ar ou água. Não são avistáveis senão pela imaginação. E, no entanto, podemos ser dali. Somos dali. Como gente que está entre dimensões e não se pode entender sem essa bizarria de ter uma identidade que é um certo exagero de fantasia.”
Através dos livros o homem revê a sua condição humana mais profunda: a incompletude. Um livro, em última instância, só o é, quando lido, quando o leitor exerce e replica a experiência da criação iniciada pelo autor. Sem isso, um livro é apenas um bibelot com peso e tamanho numa estante. VHM apresenta-nos o livro como condição necessária à sua própria liberdade:
“Assim, usar os livros para pensar como são outras pessoas e outros lugares foi inevitavelmente condição absoluta. Uma ideia inteira da qual jamais abdicaria. Os livros existem para serem infinitamente mais do que a minha biografia. Infinitamente mais do que haverá de poder ser uma sociedade. Porque eles são tudo o que há e não há, e ainda assim serão sempre incompletos. A única coisa completa acerca de um livro tem de ser a sua liberdade. A liberdade de o pensar e escrever. A liberdade de o conquistar à inexistência, fazendo-o comparecer e, a partir daí, tê-lo como um lugar no qual, em certa medida, se pode radicar uma espécie de cidadania.”
Um livro é tudo e este seu último pode ser adquirido nas livrarias de Portugal desde Janeiro de 2024. Uma história simples que vai de 1980 a 2000 na ilha da Madeira, mais concretamente num recanto do Campanário, na Ribeira Brava. Esta é a sua décima obra de ficção longa e quarta de uma tetralogia iniciada em 2013 com Irmãos, Ilhas e Ausências. Com este romance VHM quis “regressar à impressão de haver uma submissão a uma força que não se revela frontalmente mas se anuncia em todas as coisas”.
Através de um livro, o humano lança-se no terreno do impossível, daquilo que ainda não viu, daquilo que ainda não sabe, daquilo que se certo modo está velado pela estrutura do quotidiano. “Escrevo livros para o impossível”. No plano da arte, o possível redime-se e amplifica o real devolvendo ao humano um universo de possibilidades infinitas. Da mesma forma que exacerba a incompletude do humano, pela liberdade infinita que lhe provoca, o livro, atinge-o no âmago da sua vulnerabilidade envolvendo-o no risco mais genuíno de todos que é a consciência da existência, de si e para si. Pelo livro, o humano inicia uma viagem de dimensões infinitas e prova o elixir de um outro tempo onde se pode perder de si mesmo. Abeirando-se deste perigo que é, simultaneamente, a nossa condição de deriva no mundo, pelo livro, o humano revê-se numa relação de solidão fecunda, originária daquele que será também o seu maior poder: a superação de si só poderá acontecer por si. O homem, pelos livros, é e será sempre a chave de si mesmo. A beleza é e será sempre um dos principais gatilhos desta fechadura.
Valter Hugo Mãe, Deus na escuridão, Porto Editora, 272 pp
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Ivo Aguiar
20622
Sobre o Autor
Ivo Aguiar
Leitor omnívoro. Escritor independente. Filosofia, Poesia e Arte em Geral.