Será possível uma “morte” de “Deus”?

Com aspas ou sem aspas, no substantivo comum ou próprio, a categorização de palavras como “morte” e “Deus”, é motivo suficiente para que uma simples classificação gramatical nos eleve para a mais complexa discussão ontológica sobre a vida, o homem e a realidade. As fronteiras entre a Gramática e a Filosofia são barreiras fictícias impostas pela fragilidade dos diversos sistemas educativos. Toda e qualquer discussão acerca de categorias gramaticais de um determinado sistema sintáctico é, por si só, uma discussão filosófica que pode ser ampliada à mais pura discussão ontológica (ou metafísica). Usar termos sintácticos como “morte” ou “Deus” numa frase é, desde logo, um desafio para quem respeita o universo em torno das “Categorias e Objectos”, que governam, definem e possibilitam a existência do humano no universo. Universo físico, mas também universo linguístico e de interpretação do real. Categorias e Objectos – Inquérito Semiótico-Transcendental, título de um dos principais compêndios de ontologia publicados em Português, por Adélio Melo na INCM. Saudades Professor!

Nós por cá, vamos tentar despir as aspas e usar os termos com a devida consciência do peso de cada palavra. Um peso prosaico que, por vezes, apenas a poesia consegue pesar devido à leveza etérea da sua eloquência.

Nietzsche anunciou a morte de Deus numa obra intensa e pela boca de Zaratustra, não que Deus tivesse sido assassinado por um qualquer criminoso do Bronx filosófico despoletando uma qualquer investigação policial. A investigação da morte de Deus é, por si só, um desafio filosófico por excelência e pode ser feita no silêncio da secretária de um pensador interessado. Não precisamos dos recursos do FBI para investigarmos as causas e as consequências da morte de Deus. Cada ser humano tem em si os recursos suficientes para efectuar toda a qualquer investigação desta índole, basta que a hipertrofia muscular se desloque um pouco para a zona do músculo cefálico e, em nome da liberdade de pensamento, se inicie uma caminhada sem fim, uma caminhada de aporias, como muito conhecimento, algumas certezas e todas as dúvidas necessárias à expulsão contante do domínio da estupidez humana. Voltando a Nietzsche, a morte de Deus não é mais do que a vitória da supremacia humana sobre as imposições de Deus, nomeadamente na sua vertente moralista. Deus em Assim Falava Zaratustra dá lugar ao Übermensch, ou sobre-humano, tantas vezes mal traduzido em Português como Super-Homem (fazendo lembrar uma figura da DC Comics com calças de licra justas e capa voadora). Übermensch, um humano, que se supera a si mesmo pela superação dos códigos morais que a própria sociedade lhe reserva e impõe. Anunciada a morte de Deus, o homem, entregue a si mesmo, necessita agora de preencher o vazio físico e metafísico causado pelo morto. A categorização transcendental subjacente à sintáctica de “Deus” é um terreno ontologicamente complexo que necessita de um preenchimento constante. Podemos não acreditar em Deus, como criador ex-nihilo de toda a realidade, podemos até ser alimentados por um cepticismo dogmaticamente ateu, mas teremos sempre de dar resposta ao nascimento da Ideia de Deus no ser humano. Podemos não ser criados por Deus, podemos ser até autores da Ideia de Deus em nós. Mas como? Como viver com esta ideia absoluta dentro de nós que nos poderá levar a afirmar as maiores barbaridades, individual e colectivamente? Qual o plano de arquitectura por detrás de toda a racionalidade que permite ao humano confrontar-se com a Ideia de Deus? Não é possível adiantar nenhuma resposta minimamente válida sem remeter todo e qualquer leitor para a leitura integral de uma das obras mais fundamentais da Filosofia Ocidental: Crítica da Razão Pura, escrita por Emmanuel Kant em 1781.

Nietzsche matou Deus, de uma forma simbolicamente bela, no terreno da física dos valores, mas deixou eterna a discussão das condições de possibilidade que alimentam e sempre alimentarão a ideia de um valor absoluto no ser humano. Quase como se tivesse apagado o nome de Deus de um longo livro da história da humanidade, mas cuja visibilidade ainda aponta para uma qualquer coisa que subsiste depois do apagamento. O homem escreveu o nome de Deus a lápis num caderno que Nietzsche apagou. E bem! Outros homens vieram depois de Nietzsche e a problemática de Deus mantém-se viva, pelo menos para todas as gerações que ainda não acreditam na inevitabilidade das respostas unicelulares da IA a esta e a qualquer outra problemática filosófica. Nietzsche deslocou a problemática de Deus para o homem, mas não para um homem qualquer, um Übermensch, alicerçado na condição de possibilidade básica de um além-do-homem causa da ascese de um “si mesmo”. Esta imperialidade mais tarde enlouqueceu a racionalidade e por isso, alguns autores apontam Nietzsche e Hegel como fundamentos teóricos do aparecimento das teorias supra-raciais onde se fundamenta o nazismo, por exemplo.

Mas se nos fixarmos numa leitura simplista da morte de Deus anunciada por Nietzsche talvez possamos concluir que esta morte é, em si mesma, uma impossibilidade devida à estrutura sintáctica do pensamento: não é possível apagar um termo sintáctico se esse termo continuar a fazer parte do léxico gramatical de uma determinada língua. Não é possível uma linguagem sem Deus, independentemente da equivalência sintáctica de cada idioma. Se quisesse matar Deus verdadeiramente, Nietzsche teria de apagar definitivamente o termo da estrutura gramatical de todos os sistemas de sintaxe possíveis. Enquanto houver um falante de Português que use o termo “Deus” ou um falante de Inglês que use o termo “God” a morte de Deus estará sempre adiada do ponto de vista do pensamento e da linguagem. A melhor forma de matar alguma coisa é que fazê-la verter no esquecimento absoluto. Estará a humanidade prepara para levar Deus ao altar universal do esquecimento absoluto?

Ora, no meu entendimento, é impossível o ser humano livrar-se das categorias básicas que estruturam o seu próprio pensamento, a sua própria linguagem. Não tenho pretensão em construir uma arquitectura do pensamento humano, como fez Kant. Gostava de ter oportunidade de tempo em vida para fazer um upgrade desta arquitectura à luz do século XXI, mas esta é uma tarefa demasiado ambiciosa para ficar sujeita ao rio do esquecimento universal. Por isso, desisto da ideia, mas não deixo de pensar nela. Sempre e a toda a hora.

Uma perspectiva interessante para a anunciada morte de Deus é fazer uma análise ontológica do sobrevivente Übermensch. Será este sobre-humano apenas um asceta moral de si mesmo? Em que níveis ontológicos de Ser se poderá situar este Übermensch? Como é que o ser humano se pode superar a si mesmo?

Fernando Pessoa, através de algumas leituras atentas e sábias de Eduardo Lourenço, apresenta-nos algumas alternativas de pensamento apontando caminhos com sentidos múltiplos e onde podemos concluir que a literatura e a poesia, em particular, podem ter um papel chave na categorização / definição daquilo que, hoje, pode ser, para nós, o Übermensch: um ser humano que se supera a si mesmo pelo território da poesia. A poesia como território onírico e hiper-real que Pessoa baptizou como sendo o domínio do além-Deus. “Talvez fosse preferível que Pessoa o tivesse designado de aquém-Deus, aquilo que não tem mais realidade que a nossa impotência em nomear e concebê-lo, se não como Pura Ausência, percebida e invocada como sendo a nossa própria Existência, como puro nada – mas um Nada que dói. E que é menos a vida crucificada entre os braços românticos da “morte anteriana”, coeterna da nossa alma, do que a mesma sombra desse Deus imaginado por Pessoa como “pura impotência” e descrito como Aquele a quem “a Verdade morreu”.

A exegese pessoana da noção de Deus coloca Eduardo Lourenço numa intensa exploração conceptual de domínio ontológico. A deslocação do território de Deus entre o além e o aquém é, por si só, um raciocínio complexo de uma abstracção ímpar para a compreensão não apenas do conceito de Deus como também da relação deste conceito com o homem, seu criador. Teoricamente, o conceito de Deus não se compatibiliza com as configurações e disposições espácio-temporais onde se incluem os advérbios além e aquém. Mas não será esse, seguramente, o objectivo. O objectivo primordial da leitura sábia de Lourenço é vincar a posição do humano perante o vazio que o constituiu, perante o Nada que dói existencialmente e o faz roer eternamente o osso infinito do divino. Se Deus é Pura Ausência, talvez seja condição de possibilidade desta existência finita do homem. Se Deus é Pura Ausência, talvez seja esta bússola de orientação para um Nada que chama, que interfere e apela. Este Deus é, simultaneamente, o Deus da palavra e da poesia que fecunda a palavra do nada e muito pouco o Deus da esperança de um homem orientado para uma qualquer condição ético-moral.

© Júlio Pomar, 2004, pormenor

Pessoa coloca Deus na antecâmera de si próprio como condição de possibilidade de uma Pura Ausência rumo à nadificação da nossa existência. Deus não é mais Omnipotente, como está inscrito nos ensinamos judaico-cristãos, por exemplo, mas Pura Impotência, para quem a “Verdade Morreu”. Este nihilismo justifica e garante um certo tipo de existência humana baseada e alicerçada na descodificação absoluta do Nada como garantia do Real. Através da poesia, Pessoa apresenta-nos uma extensa Teosofia inscrita na singularidade de toda uma linguagem heteronímica. Pessoa, ao heteronimizar-se apresenta-se ao real como um “tradutor de teósofos”. Para Eduardo Lourenço, na óptica de Pessoa ninguém “matou” Deus, o seu insondável silêncio é só o inverso de um mundo que é como a Natureza inteira, “voz de Deus”. A poesia de Pessoa encontra em cada heterónimo uma expressão mais ou menos pagã deste universo insondável que é, em simultâneo Palavra, Deus e Natureza – todos e numa só condição instaurados na (pré)visão humana de um silêncio ensurdecedor que nos parece reger e provocar continuamente num impulso para a criação de algo que não sabemos de onde vem nem para onde irá, um dia. Na ausência de certezas restam-nos algumas iluminadas aporias de interpretação que todos os sábios aqui citados nos vão permitindo e proporcionando.

© Fotografia Capa (fragmento): Laureano Ramón, “En Silencio III”


Ivo Aguiar

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Sobre o Autor

Ivo Aguiar

Leitor omnívoro. Escritor independente. Filosofia, Poesia e Arte em Geral.

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