1) Contexto semântico
Podemos presumir que tudo o que é produzido pelo homem é natural, não artificial. Ou seja, o não-natural não existe. Tudo o que é produzido pelo homem é, de certa forma, natural porque é natural que o homem produza. Nesse sentido, é inútil a diferenciação entre natural e artificial. No entanto, a separação entre o natural e o artificial é, por vezes, útil à organização do pensamento. Comummente distinguimos aquilo que é artificial, como sendo aquilo que é produzido pelo homem e não pela natureza, ou seja, aquilo que não é natural ou que, de certa forma, que advém de alguma arte ou engenho com interferência directa do ser humano. Assim, a inteligência natural é a inteligência produzida pela natureza no humano, e a inteligência artificial é a inteligência produzida pelo humano através de um processo que lhe é exterior.
Seria interessante reflectir neste domínio até que ponto a inteligência natural também não é, ela própria, produzida pelo humano: a liberdade que este ser alega, não é precisamente o rasgar das amarras que a natureza lhe impõe, em nome de uma autonomia capaz de pensar o mundo de uma forma autêntica, integral e criativa? Contrapondo esta curiosidade, também é interessante pressupor que toda a inteligência é artificial se artificial é tudo o que não é natural, isto é, que se rege exclusivamente pelas leis da natureza, então tudo aquilo que, no humano, estiver para lá da sua fisiologia ou biologia, é artificial. Se é inteligência é porque é artificial. Quando se trata detalhar os binómios artificial Vs natural somos iniciados num tipo de dialéctica em que, de repente, tudo pode ser possível com a mesma validade do seu contrário.
Ultrapassados estes percalços intuitivos fixemo-nos, então, no ponto da definição mais básica de IA, como sendo um tipo de inteligência não humana, ou seja, criada pelo humano com um objectivo e uma estratégia definidos. Esta exterioridade concede à IA um estatuto de problematização interessante não apenas do ponto de vista da tecnologia, da linguística ou da ciência em geral, mas e também do ponto de vista da filosofia, em especial das disciplinas da Filosofia do Conhecimento e da Linguagem.
2) Contexto histórico e interdisciplinar
A circunstância histórica do desenvolvimento da IA tem um epicentro temporal localizado no século XX, nomeadamente na sua segunda metade. Apesar de recentemente, com o aparecimento de aplicações práticas como o ChatGPT da OpenAI, a questão substancial da IA não é de agora e já intensos e interessantes debates foram talhados no século passado. A Máquina Universal de Turing, capital para o desenvolvimento da IA, por exemplo, não teria sido inventada sem a pressão dos Aliados para que mensagens nazis codificadas fossem reveladas durante a Segunda Grande Guerra Mundial.
A IA é uma das disciplinas principais num universo científico mais amplo a que podemos chamar de Ciências Cognitivas. Actualmente, devido ao boom narrativo a que nos habituamos desde 2020 (o Chat GPT foi criado pela empresa Open AI e lançado em Novembro de 2022), a IA assume um papel preponderante no seio de outras áreas do saber cujo objectivo principal é a questão da mente e da cognição. No entanto não nos podemos esquecer, apesar da acepção moderna do termo – a utilização do computador como meio de simulação dos processos naturais ou como suporte de capacidades vulgarmente atribuídas à inteligência humana, que importantes passos foram dados muito antes desta concepção. Da Ilíada a Descartes, passando pelo autómato de Kempelem em 1769 até chegar à programação mais recente de Zuse (1945), importantes mudanças que foram ocorrendo.
Um dos grandes passos com vista à implementação da disciplina foi desenvolvido por outro dos pais da ciência cognitiva – foi Claude Shannon e a sua mais importante Teoria da Informação. Depois de Turing ter publicado em 1937 os seus resultados, Shannon – um jovem estudante do MIT, defende uma tese de mestrado na qual mostra que circuitos eléctricos podem ser interpretados com o cálculo booleano. O laço entre o circuito eléctrico, cálculo booleano, aritmética e lógica proposicional está estabelecido: as fórmulas proposicionais ou booleanas são realizáveis ou materializáveis num circuito como os circuitos de Shannon, as operações aritméticas em circuitos mais complicados; inversamente, o computador dos circuitos é inteiramente descritível por fórmulas lógicas ou aritméticas. Shannon conclui que os princípios da lógica (em termos de proposições falsas ou verdadeiras) podiam ser utilizadas para descrever dois estados: on e off dos interruptores de transmissão electromecânica. Na sua tese, avançou também pela primeira vez, com a ideia de que os circuitos eléctricos podiam incorporar operações fundamentais de pensamento. Desenvolveu ainda na sua teoria da informação que a mesma pode ser abordada de uma forma completamente isolada do conteúdo específico ou assunto, como decisão singular entre duas alternativas igualmente plausíveis. Mais tarde Wiener explicou a importância desta forma de conceptualização: «Informação é informação, não é matéria ou energia».
Havia, no entanto, um fosso a preencher: a mente. A máquina e o cérebro deviam ser pensados conjuntamente? Quais as relações entre ambos? Já não se trata nesta fase de estudar o binómio entre artificial e natural, mas das relações entre a fisicalidade e formalismo. Será possível traduzir fisicamente, através da lógica e do cálculo, aquilo que se passa na íntegra no pensamento humano?
A IA enquanto mecanismo replicador de um conjunto de tarefas cognitivas não avançou de forma isolada no longo caminho que percorreu ao longo do século XX. Várias foram as disciplinas que, de forma directa e indirecta se foram desenvolvendo dando corpo à área do saber que já denominamos como ciências cognitivas. Entre as disciplinas que compõe o universo das ciência cognitivas, destaque principal para:
– a Psicologia e a passagem do Behaviorismo clássico (Skinner) ao Cognitivismo (Miller);
– a Linguística e a importância de N. Chomsky por ser o primeiro linguista a considerar que a linguagem possui todas as precisões formais da matemática;
– a Lógica e consequentemente aquilo a que pelo poder do cálculo nos habituamos a chamar de Informática em todo o percurso que desenvolveu desde Boole a Frege (matematização da lógica), Hilbert (Sistemas formais), Alan Turing por nos ter apresentado o primeiro arquétipo daquilo a que mais tarde chamamos de computador através da criação da Máquina de Turing e da Máquina Universal de Turing, até J. Von Neumann que se dedicou à ideia de inventar
um programa que instruísse a Máquina de Turing a reproduzir-se a si própria;
– a Cibernética que pelas mãos de McCulloch e Walter Pitts, tentará em 1943 mostrar que a lógica proposicional e mesmo a lógica de predicados são materializáveis ou realizáveis em circuitos de elementos simples, a que eles chamam neurónios formais. Estamos perante uma tentativa inédita de correspondência entre a formalidade do código e a fisicalidade do hardware, entre a mente e o cérebro. A interpretação deste resultado segundo os seus autores é que a mente está literalmente encarnada no tecido cerebral: pensamento e cálculo são assim unidos sob o signo do cálculo. A ambição de McCulloch e Pitts não é tecnológica, mas científica e filosófica;
– as Neurociências, um conjunto de ciências que, pela sua interdisciplinaridade assumem um papel importante na fundação da ciência cognitiva, entre as quais: neurologia, neuroquímica, neurofisiologia e neuroanatomia;
– a Filosofia Analítica ou Filosofia da Mente e a importância de autores capitais como H. Putnam (funcionalismo), J. Fodor (binómio linguagem-pensamento), J. Searle (críticas ao cognitivismo), T. Nagel (subjectividade e fisicalismo) e D. Dennet (representação).
Todo o percurso desenvolvido de forma interdisciplinar entre lógicos, físicos, matemáticos, psicólogos, cientistas e filósofos aqui destacados do século XX proporcionou de uma forma mais ou menos explícita o boom actual da IA. Esta explosão dificilmente pode ser percebida sem atendermos à génese dos principais pressupostos que lhe deram origem, desde 1956 até às constantes e coerentes ligações entre a lógica e a matemática que proporcionaram o desenvolvimento de todo um conjunto de linguagens de programação fundamentadas pelo cálculo que desaguaram, hoje, num conjunto de ferramentas que vão desde a robótica mais avançada até à mais particular aplicação de Modelos de Linguagem Grande (LLM) onde se alicerçam diversos chatbots como é o caso do ChatGPT.
Para mais informações sobre o contexto histórico e disciplinar em que se baseia a IA consultar o documento PDF aqui.
3) ChatGPT um antes e um depois
É completamente diferente falar de IA antes ou depois de Turing, antes ou depois de Shannon e Wiener. É inegável. A evolução da IA ao longo do século XX dependeu, essencialmente, das pesquisas académicas que lógicos, matemáticos, cientistas e filósofos imprimiram ao longo de uma vida. O paradigma mudou. Actualmente, a IA é algo que está na boca de toda a gente, mas ninguém associa a velocidade com que se operam as suas mutações a nenhum indivíduo em particular. É, igualmente, inegável que é completamente diferente falar de IA antes e depois do aparecimento do principal Chatbot que conhecemos como ChatGPT.
O ChatGPT é um sistema de chat operado por um tipo de IA, mais concretamente pelo modelo de linguagem por inteligência artificial GPT-3/GPT-4, desenvolvido pela empresa OpenAI. Por outras palavras, um robot virtual com o qual podemos conversar devido à sua capacidade altamente treinada de compreender e gerar texto de uma forma muito coerente e semelhante ao que faria um qualquer ser humano que consiga aprender as regras de funcionamento de uma língua. Para além de gerar informação de texto, o ChatGPT consegue também gerar, perceber e manipular outros tipos de recursos multimédia como imagens e vídeos com uma facilidade inacreditável.
O ChatGPT obtém a totalidade de informação na internet: textos publicados, artigos noticiosos, enciclopédias e livros digitais e todo o tipo de publicações web que, convertidas em caracteres binários, são facilmente transformados em fonte de informação para um chatbot. A sua capacidade quase infinita de recursos rapidamente se converte na capacidade quase infinita de gerar de forma quantitativa e qualitativa outros recursos solicitados. Apesar de a empresa OpenAI reconhecer que, por vezes, o ChatGPT escreve respostas que, “parecendo plausíveis, são incorrectas ou sem sentido”, provocando um efeito de alucinação não desejado, o ChatGPT apresenta, aos dias de hoje, uma capacidade invencível de processamento de respostas com uma capacidade de articulação e fundamentações lógica e linguística inimagináveis há 10 anos atrás. Prevê-se que o desenvolvimento apresentado por este tipo de tecnologia seja exponencial e isso levanta-nos alguns problemas sérios relativamente às limitações deste tipo de ferramentas.
4) A IA e o Poder
Se a IA é alimentada não apenas pela tecnologia que permite a geração de conteúdos, mas, essencialmente, pelos dados utilizados para gerar esses mesmos conteúdos então adivinha-se que os próximos anos sejam efectivamente uma corrida em sprint pelo alcance e disponibilidade dos dados. Sem dados que a alimentem, esta tecnologia não passa de um comando que executa ordens binárias simples. Quanto maior é o número de dados e a sua capacidade de estes estarem inteiramente disponíveis de uma forma permanente e consecutiva, melhor será o desempenho da tecnologia ChatGPT. Mais dados convertem-se em melhores produtos, melhores produtos atraem novos utilizadores e novos utilizadores geram mais dados que melhorarão num ciclo infinito o produto final. Os utilizadores que diariamente “usufruem” de aplicações online são a causa e a consequência desta tecnologia. A escala de dados necessária e a capacidade de armazenamento para desenvolver tecnologia baseada na IA está na base da centralização e monopolização da IA. As grandes empresas californianas nos Estados Unidos lançaram-se na corrida a este tipo de tecnologia e a par do ChatGPT da OpenAI (2022) apareceram outros chatbots como é o caso do Gemini da Goolge e o Copilot da Microsoft. A China, não quis ficar atrás da corrida e apresentou, recentemente, o seu próprio projecto DeepSeek alegando que a sua versão V3 é a mais capacitada do mercado mundial provocando de imediato uma reacção muito negativa do valor das acções das tecnológicas não apenas nos EUA como também na Europa.
Até ao momento, podemos ficar com a sensação de que esta diversidade é benéfica para o desenvolvimento multipolar deste tipo de tecnologia. No entanto, todas têm um denominador comum: em qualquer um dos casos, recolhem enormes quantidades de dados, procuram padrões estáveis e geram de uma forma muito competente resultados estatisticamente prováveis e que facilmente se confundem com linguagem e pensamento humanos. A luta pelo poder não é apenas uma luta entre nações. A luta pela IA é uma luta pelo poder que passou para os corredores dos oligarcas multimilionários americanos. Elon Musk por exemplo, foi co-fundador da OpenAI em 2015. No anos seguintes debruçou-se de forma até interessada sobre os riscos existenciais da IA, mas em 2018 renunciou ao projecto por este não ter um carácter assumidamente lucrativo. Recentemente, organizou um grupo de investidores para, em conjunto, comprarem a totalidade da OpenAI de Sam Altman. Após a aquisição do, para muitos, saudoso Twitter, Musk revela que está na crista da onda do desejo de poder de uma das matérias-primas mais poderosas da actualidade: os dados e a capacidade de com eles conseguirmos gerar os resultados que queremos. Ao tombar para o lado da oligarquia a IA corre o risco do seu brilhantismo já não ser igualar as capacidades aparentemente humanas, mas, essencialmente, a capacidade de controlar e organizar a informação e de a disponibilizar mediante o poder da ideologia dominante.
5) Avanços e Limitações Ontológicas da IA
Já analisamos os contextos semânticos, históricos e interdisciplinares da IA e já percebemos de uma forma muito básica que a IA é hoje, uma ferramenta poderosíssima que para além de compreender e interpretar informação disponível ou solicitada, consegue assumir o controlo cognitivo avançada executando tarefas como pensar, aprender, interpretar e resolver problemas com uma capacidade infinitamente superior a um qualquer ser humano. No entanto, a forma como o debate se tem desenrolado nos últimos anos alterou radicalmente a forma como encaramos este tipo de tecnologia:
- O paradigma tecnológico mudou radicalmente: o desenvolvimento da tecnologia já não está encubado nos laboratórios das universidades, mas nos principais centros nevrálgicos do poder económico que, tendencialmente, parece ocupar o centro do poder político;
- O centro nevrálgico económico tende a ficar refém, cada vez mais, de um conjunto de indivíduos em cada vez menor número;
- Esta tecnologia, apesar de todo o seu potencial imanente, pode rapidamente, instalar-se ao serviço de uma narrativa política dominante e ignorar os perigos que isso poderá representar para o resto da humanidade.
- A forma como cada ser humano se irá relacionar com a IA, no presente e no futuro, pode mudar radicalmente a definição que temos daquilo que é, afinal ser humano.
- A prazo, a IA, tal como defende, por exemplo, o Prémio Nobel da Encomia James A. Robinson, irá aumentar incomensuravelmente o fosso entre os países mais ricos e os países mais pobres, e dentro dos países mais ricos o fosso entre os mais ricos e os mais pobres.
Apesar de todas as preocupações não nos podemos esquivar dos avanços e das mudanças positivas que esta tecnologia poderá operar em todos os sectores da nossa sociedade: na medicina e na biomédica, no design e na arquitectura, na engenharia em especial na programação informática pelo depuramento instantâneo e quase infinito do código computacional, na física e na química pela velocidade exponencial com que diferentes variáveis podem ser calculadas em simultâneo, na publicidade, na indústria (em geral, mas particularmente na aeroespacial, automóvel e militar) e até ao nível do entretenimento. Todas estas mudanças acabarão por inflectir mudanças e alterações de comportamento ao nível das empresas e das pessoas.
O ser humano e o seu posicionamento face à IA
A IA é talvez a questão que mais drástica e prementemente colocará o ser humano à prova do ponto de vista ontológico e existencial. A Filosofia poderá ter um lugar fundamental no esclarecimento de todos os pressupostos em que as discussões em torno desta questão se colocam. Os problemas do futuro relacionados com a IA deverão ser explicados de uma forma pedagógica para que ninguém fique refém da tecnologia que tão útil pode ser ao ser humano:
1) A IA devido ao seu funcionamento operacional e estatístico trabalha ao nível de um algoritmo que se rege por um número quase infinito de dados e projecta a ideia de criar conhecimento a partir do nada. Ficamos com a sensação de que estamos perante um ser humano infinitamente mais eficiente. Daí que o contexto histórico seja importante para perceber todas as aspirações formais que estiveram na origem daquilo que hoje se traduz numa potente máquina chamada chatbot. No entanto, é preciso ter a consciência que esta tecnologia generativa não cria a partir do nada, apenas utilizado e cruzando um conjunto de dados infinitos mediante a instrução explícita de um ser humano.
2) Parece que a IA, actualmente, vivencia um momento ansiado há décadas de ultrapassar o cérebro humano, não apenas quantitativa, mas também qualitativamente pondo em check não apenas as operações matemáticas e lógicas, mas também a parte inventiva e criativa do ser humano. Veremos mais à frente que não. Personagens importantes e que participam actualmente no desenvolvimento feroz deste tipo de tecnologia, como é o caso de Bill Gates, defendem que apesar das calculadoras e dos computadores, devemos continuar a ensinar às crianças as operações mais básicas de cálculo para que estas possam perceber de forma saudável que a tecnologia não é uma evolução filogenética da espécie humana.
3) Henry Kissinger alertara-nos para o facto de a IA poder significar o Fim do Iluminismo, tal como o concebemos durante séculos. A razão humana não pode deixar de ser o centro nevrálgico de todas as operações sob pena de ela mesma deixar de ser o garante de toda a responsabilidade ética que o ser humano assume no mundo onde habita perante si, perante os outros e tudo aquilo que o rodeia.
4) O facto das máquinas se aproximarem a uma velocidade atroz das capacidades humanas, não nos deve fazer perder a capitalidade das questões filosóficas essenciais, como são as questões ontológicas e existenciais. A capacidade criativa da genialidade humana nunca poderá ser ameaçada por nenhuma tecnologia baseada na reprodução estatística de dados por muito inventiva que esta pareça.
5) O ser humano não existe em abstracto. Existem contextos sociais, históricos, culturais, económicos, etc. que condicionam e propiciam o desenvolvimento do ser humano no mundo. O mesmo se passa com o conhecimento que este ser é capaz de gerar. Não podemos correr o risco de cristalizar o “conhecimento” produzido pela máquina. O problema não é já a possibilidade de traduzibilidade do pensamento humano em redes neuronais que se convertam em circuitos eléctricos, tal como alimentou as preocupações de Shannon ainda na primeira metade do Séc. XX, o problema é a narrativa dos resultados actuais de um chatbot imporem de uma forma universal a lógica de um pensamento único. Segundo o sociólogo Boaventura Sousa Santos, “a IA é a derradeira promotora do pensamento único. Dada a sua natureza estatística, privilegia a quantidade em detrimento da qualidade, ignora as forma minoritárias, alternativas, criativas, emergentes, inovadoras e heterodoxas de ser, pensar, saber e sentir”. Sob a insuspeita de neutralidade mecânica a IA pode esconder de todos a necessidade universal de imposição deste tipo de pensamento único principalmente quando alicerçada na parceira do binómico dominante entre a política e a tecnologia.
6) A IA não escreve poesia. Este pode ser um arauto difícil de explicar, mas pode revelar a infinita distância entre o ser humano e IA. Podemos pedir um poema a todos os chatbots de IA, podemos. As respostas são tentadoras. Perante uma determinada instrução podemos inclusivamente encorajar o chatbot a criar um com diferentes tendências, formas e métricas. O resultado pode ser surpreendente para um leigo. No entanto, independentemente do resultado, aquilo que nos aparece nunca será um poema, no verdadeiro sentido da palavra poesia. Podemos estar perante uma métrica decassilábica com estrofes definidas em forma de sonetos semanticamente perfeitos, no entanto, nunca estamos perante um poema. A carga subjectiva que decorre da experiência estética da criação humana torna a experiência impassível de traduzibilidade perante qualquer tecnologia, presente ou futura. A poesia nasce da convergência estética entre aquilo que é criado e aquilo que é apreendido posteriormente. A experiência da leitura é um contínuo da actividade criadora: “o encontro entre o poeta e o leitor implica um «desejo de acertar a linguagem», e só acontece quando o leitor é capaz de recriar a experiência interior de iluminação e de conhecimento que fez nascer o poema. É esse o apelo lançado pelo poeta, um feroz e humano apelo à liberdade de quem o lê.” (O Surrealismo Português, Clara Rocha, INCM)
Ora, a IA pode produzir um conjunto infinito de jogos de linguagem a que muitos poderão apelidar de poemas, mas nunca conseguira colocar no acto de criação esta pretensão surrealista de querer replicar no outro ser humano um apelo feroz e humano pela liberdade.
E é sempre em nome da liberdade e pela liberdade que defenderei o sentido último da existência humana.
—
Ivo Aguiar
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Sobre o Autor
Ivo Aguiar
Leitor omnívoro. Escritor independente. Filosofia, Poesia e Arte em Geral.