A liberdade como forma de vida

25 de Abril: 50 anos e uma liberdade por cumprir

Mas afinal o que é a Liberdade? O que pensa cada um de nós quando ouve a palavra liberdade no contexto das actuais celebrações dos 50 anos da Revolução que, em Portugal, ficou conhecida como a Revolução dos Cravos?
Este texto tem como principal objectivo detalhar alguns pormenores em torno do conceito de liberdade de forma a esclarecer algumas perspectivas que sucintam esta palavra es(a)quecendo o peso histórico e filosófico que o conceito assume perante o desenvolvimento do próprio ser humano.

 

Liberdade Diacrónica

Só há liberdade quando colocamos um humano na equação. Isso parece evidente. Mas este ser humano, cresce e evolui como qualquer organismo vivo e, nesse sentido, falar de liberdade para um ser com 4 meses, 4 anos de idade ou 44 é totalmente diferente. Podemos assim dizer que a liberdade é um conceito que evolui de forma sincrónica relativamente ao ser humano. Todavia, não é o conceito de sincronia que mais interessa para o presente ensaio. Este domínio interessante é estudado essencialmente pela Psicologia do Desenvolvimento Humano. Aquilo que realmente nos importa destacar está relacionado com a forma com a liberdade se comporta diacronicamente, ou seja, a sua evolução ao longo do tempo para, por esta via, compreender de que forma é que essa evolução condiciona e explica o conceito de liberdade que hoje celebramos.

Liberdade é um conceito filosófico por excelência. Saber o que é a liberdade à luz do pensamento idealista de Platão é totalmente diferente e/ou complementar quando se fala de liberdade à luz da escolástica medieval, do modernismo cartesiano, do criticismo kantiano, do existencialismo de Sartre ou até da mais simples e elementar utilização de quando se fala de liberdade no contexto político e parlamentar. A palavra Liberdade é, no fundo, o denominador comum da evolução diacrónica que o conceito continua a sofrer até aos dias de hoje. Como o objectivo principal não consiste no estudo exaustivo que cada época imprimiu relativamente à importância da liberdade e no impacto que isso teve na vida de cada ser humano, destaco de uma forma premente o livro de Regina Queiroz, investigadora na Universidade NOVA de Lisboa e docente na Universidade Lusófona, com o título Liberdade onde a autora, de uma forma clara e resumida, nos dá a conhecer este que é um dos conceitos mais complexos da história do pensamento humano ao longo dos tempos. Na Antiguidade Clássica o conceito de liberdade foi pensado essencialmente enquanto responsabilidade na sua relação com o ócio individual que cada ser humano exerce ao pertencer a uma comunidade. É aqui que nasce a visão política e jurídica do conceito de liberdade tal como hoje o consideramos. Ao longo da Idade Média, a política, na sua relação com as instituições do poder, foram sendo subjugadas pelo poder da Igreja e o conceito de liberdade passou a ser amplamente definido pelo livre-arbítrio que cada um exerce na sua relação com o Deus, com o mundo e consigo mesmo. “No entanto, desde a época moderna, a ideia de liberdade como não-interferência adquire um papel cada vez mais preeminente na substantivação da liberdade, tornando-se fulcral para essa substantivação o conceito de propriedade”. O conceito de não-interferência foi amplamente considerado e até contestado motivando que, contemporaneamente, a liberdade seja apresentada mais como auto-realização onde a responsabilidade refloresce num terreno cada vez mais complexo. Não nos podemos esquecer porém, que os mesmos conceitos podem produzir “estranhas afinidades entre argumentos esgrimidos pelos pensadores de diferentes períodos históricos”: a defesa da liberdade negativa apresentada pelo libertarianismo e o liberalismo contemporâneo; a liberdade como responsabilidade em Platão, Santo Agostinho ou Nietzsche; liberdade como autor realização em J. Stuart Mill e John Rawls; liberdade como autonomia em Kant, Hegel ou Mark; liberdade como condição de possibilidade nos Estóicos ou em Sartre…

Enfim, a mesma palavra, mas com sentidos diferentes por vezes até apostos. O desconhecimento da evolução diacrónica do conceito de liberdade pode induzir o ser humano a um estado de ignorância involuntário. Por vezes ouço falar de Liberdade e vejo e sinto no sujeito do discurso um total desconhecimento do terreno conceptual relativo ao conceito abordado. Normalmente, este tipo de discurso, é acompanhado de um conjunto de “certezas” que esta aporia pretende desconstruir pois acredito que a certeza infundamentada é o principal inimigo da tolerância.

 

Liberdade como condição

Partindo da leitura atenta deste ensaio bem como da revisitação de todos os clássicos citados, cumpre-me assumir que o conceito de liberdade que aqui pretendo retractar é um conceito prático onde a Liberdade aparece como forma de vida, ou seja, uma atitude (filosófica) perante todos os constrangimentos que definem e condicionam o ser humano no exercício da sua acção e pensamento. A estrutura linguística do pensamento humano ensina-nos que as condições de possibilidade através das quais o ser humano exerce a sua autonomia no mundo são, simultaneamente, as estruturas que, por isso mesmo, o condicionam. A desconstrução deste universo a priori é fundamental para que o ser humano possa conhecer o terreno da sua liberdade. A língua, por exemplo, é um instrumento a priori que permite ao ser humano clarificar e comunicar o seu pensamento, mas, simultaneamente, “uma” língua condiciona que esse mesmo pensamento se expresse de uma forma e não de outra. Este universo apriorístico foi densamente explorado por Kant num exercício ímpar onde pretendeu esclarecer todas as condições de possibilidade que permitem ao ser humano conhecer, agir e apreciar, isto é, desenvolver uma relação cognitiva ou de conhecimento (Crítica da Razão Pura), ética (Crítica da Razão Prática) e também estética (Crítica da Faculdade do Juízo), com o mundo. O conceito de liberdade em Kant está intimamente ligado ao conceito de autonomia individual de cada ser humano perante os instrumentos a priori que lhe permitem relacionar-se com o mundo, com o outro e consigo próprio. Kant estabelece uma barreira universal através da qual a autoridade institucional podia, até então, reger os padrões da ordem de liberdade e devolve ao ser humano a capacidade inalienável de este não ser deixar coagir por entidades criadas por ele próprio, como é o caso de Deus: “É humilhante para a razão humana que, no seu uso puro, não chegue a conclusão alguma e necessite mesmo de uma disciplina para reprimir os excessos e impedir as ilusões que daí lhe resultam. Mas, por outro lado, há alguma coisa que a leva e infunde confiança em si própria; é que ela pode e deve exercer esta disciplina, sem admitir acima de si uma outra censura”. (Crítica da Razão Pura, 1781). Nesta obra Kant não só fundamenta os princípios através dos quais a razão avança no seu uso puro, como também, através do cânone, o uso prático da razão. Às leis do uso prático da razão, Kant dá o nome de leis objectivas da liberdade, aquilo que na história da filosofia ficou eternizado como imperativos categóricos e que pressupõem sempre a independência do uso prático da razão devendo progredir em consonância com aquele interesse da humanidade que não se encontra subordinado a nenhum outro superior.

Perante todos estes pressupostos, consideramos que a Liberdade é hoje, mais do que nunca, condição necessária para que o ser humano reencontre o sentido da sua própria existência. Pensar a liberdade como condição é assumir que aquilo que nos possibilita conhecer é, simultaneamente, aquilo que nos limita. Agir de forma livre, é, pois, condição para conhecermos todos os condicionantes que limitam a nossa acção.

 

Liberdade e Etimologia

Para perceber o verdadeiro significado etimológico da palavra liberdade e intuir a potencialidade que do conceito deriva – como em qualquer palavra derivada em português – devemos fixar-nos no significado primordial que deriva do latim e do grego. Em ambos os casos, o conceito da palavra está intimamente ligado à mitologia romana e grega, respectivamente.

Em grego, a palavra liberdade tem a seguinte origem:

αυτεξούσιον Poder de exercer a sua vontade, voluntário
αυτονομία Autonomia, Independência
εξουσια Liberdade moral, poder
ελευθερία ας Estado do homem livre, por oposição a escravo

 

Conseguimos, desde já, perceber que foneticamente a palavra que directamente deriva do grego é a palavra autonomia (αυτονομία) – liberdade enquanto independência, não-coacção. No entanto, para prosseguir a derivação fonética do termo em latim temos de fazer uma pausa prévia no termo grego “ελευθερία”. A palavra “ελευθερία” que tem como transcrição fonética “eleuteria” ou “elefteria” deriva do grego antigo e personifica aquilo que hoje denominamos como liberdade. O termo Eleuteria está intimamente ligado não apenas à mitologia grega como também à toponímia de algumas cidades-estado da Hélade. No que diz respeito à mitologia grega, são várias as conexões através das quais podemos aferir e apurar o significado do termos.

• Segundo Julius Hyginus, autor latino e governador palatino da biblioteca de César Augusto, Eleuteria aparece na mitologia grega como filha de Zeus e Hera, irmã de Ares, Hebe e Hephaestus.

• Nas cidades de Mira e Lícia, Eleuteria aparece adorada como associada à Deusa Artemis, deusa da natureza selvagem, da caça, da vida animal, da vegetação e do parto, filha de Zeus e Leto e irmã de Apollo. Como forma de materialização do culto aparece cunhada em moedas da época. Artemis e Apollo foram consagrados no Deuses do Olimpo.

• Aparece ainda ligada à deusa Perséfone, filha de Zeus e de Deméter, como teremos oportunidade de ver mais à frente pela transcrição latina da deusa Prosérpina.

• No grego antigo o próprio deus Dionísio aparece referido como Dionysus Eleutherius, o libertador: o vinho, a música e a dança extasiam e libertam a consciência dos medos e outras restrições opressivas.

No que diz respeito ao latim, a palavra Liberdade deriva do termo Libertas, e personifica a liberdade em honra da qual os romanos antigos veneravam a deusa Libera, o equivalente grego à deusa Eleutéria.

Segundo a religião romana primitiva, Libera, deusa da fertilidade feminina e da liberdade era o equivalente feminino de Liber Pater, deus da fertilidade masculina e da liberdade, deus do vinho e protector dos direitos (equivalente ao deus grego Dionísio/Baco). Juntamente com Ceres, deusa da agricultura, das colheitas, da fertilidade e das relações maternais, compunham o culto triádico estabelecido no ano 493 aC no Monte Aventino. Ceres era a mais velha das divindades e, juntos, pertenciam ao Dii Consentes, o equivalente ao deuses gregos do Olimpo.

A partir de 205 aC Libera foi oficialmente identificada como Prosérpina, ao adquirirem a forma romanizado do mistério grego também conhecido como ritus graecia cereris. Na realidade, o nome de Prosérpina é uma latinização de “Perséfone“, talvez influenciado pelo latim “proserpere” (“emergir, rastejar”), com referência ao cultivo de grãos. Perséfone era a deusa grega do submundo, dos mortos, dos grãos (sementes) e da natureza, filha de Zeus e de Deméter.

[Apenas por curiosamente, noutros quadrantes geográfico as civilizações Inca e Maia sempre estabeleceram uma correcção muito estreita entre os cultos da fertilidade, e o mundo dos mortos, do submundo, de onde emerge a vitalidade da agricultura por contacto dialéctico com o universo solar].

Prosérpina foi oficialmente apresentada a Roma como sendo filha de Ceres relação através da qual nasceu o culto romanizado de “Mãe e Filha” que instaurou na sociedade romana os valores da pureza da mãe devota e fecunda, por oposição a Liber Patre que ao patronizar a fertilidade masculina esteve sempre associado ao vinho, ao prazer e ao êxtase. Mais tarde, Cícero descreve Libera e Liber Patre como filhos de Ceres.

Curiosidade: foi Prosérpina quem permitiu que Orpheu entrasse no Hades sem perder a vida para resgatar sua esposa Eurídice do mundo dos mortos.

Independentemente da derivação etimológica da palavra, o significado grego e latino associado ao nome ou à divindade correlativa está sempre associado ao conceito de natureza, fertilidade, agricultura, culto do vinho como forma de libertação da opressão natural do corpo, por ascendência directa ou indirecta da sua filiação divina. Não nos podemos esquecer quer as divindades na mitologia grega eram antropomórficas. De uma forma ou de outra, a Liberdade é sempre fruto do poder da fertilidade, ou seja, da capacidade de gerar algo de uma forma autónoma e independente.

 

Liberdade e Verdade

Com os gregos aprendemos, também, que o conceito de Liberdade está intimamente ligado ao conceito de Verdade. O problema da verdade como liberdade é, simultaneamente, o problema da liberdade como verdade. Verdade deriva do grego Alétheia (ἀλήθεια) e significa desvelamento ou não-ocultação. Para os gregos existe uma absoluta correspondência entre a realidade e a verdade, ou seja, a verdade é tudo aquilo que não oculto, isto é, a realidade.

λήθεια
A létheia
Não Oculto
Não Esquecido
Não Velado
Não Imerso

 

Para um grego, o caminho da liberdade é o único possível, o único que indica ao homem o encontro com a realidade tal como ela é, ou seja, depois de desveladas. O caminho da verdade é, portanto, o caminho da libertação das sombras, daquilo que está oculto, o caminho da luz. O caminho que permite tornar visível aquilo que, por alguma razão, está “por” descobrir. Foi Heidegger, na sua obra Ser e Tempo, quem mais se dedicou à análise etimológica da verdade, no sentido grego de A+létheia. Esta designação de desvelamento é, de certa forma, contrária ao sentido da verdade comumente assente na empiricidade atomista dos factos que considera a verdade como um estado quase objectivo e descritivo.

Não nos podemos esquecer, todavia, que para os gregos, os dois lados da balança (oculto, não-oculto) estavam intimamente ligados, conectados entre si. A liberdade é caminho através do qual o ser humano consegue, de certa, forma compreender esta ligação e, com isso, conhecer melhor o mundo que o rodeia e a si mesmo. Heraclito, filósofo grego nascido em Éfeso no ano 500 aC, tinha uma máxima trazida até nós através de um fragmento que esclarece este ponto de análise da noção de verdade:

A verdadeira natureza (o ser, a verdade) das coisas gosta de ocultar-se

PHYSIS PHILEI KRYPTESTHAI
Natureza/Ser gosta ocultar(se)

 

Physis e Kryptesthai apesar de diferentes tendem uma para a outra. Estão, de certa forma, unidas e isso fragiliza a questão da verdade. Cabe ao ser humano, através da Philei, estabelecer a ligação entre estes opostos e, desta forma, alcançar ou aproximar-se do ser das coisas, a sua verdadeira natureza. Este é o longo caminho da verdade que é, simultaneamente, o caminho da liberdade.

 

25 de Abril, a revolução e a promessa da Liberdade

Inspirados nos diversos relatos de Lídia Jorge, podemos afirmar que o 25 de Abril foi um dia apenas. Um dia que começou numa madrugada e onde alguns militares portugueses arriscaram o seu futuro em nome de uma possível liberdade para todos! A incerteza, a escuridão, o risco da noite deram lugar à libertação e à beleza da tarde, num dia que ficou conhecido na história de Portugal como o Dia da Liberdade.

Foi o dia 25 de Abril que derrubou 48 anos de ditadura, um período político que ficou conhecido como Ditadura Militar (1926-1933) e Estado Novo (1933-1974). O Estado Novo foi um regime político alicerçado em 3 pilares fundamentais: a crueldade, a estupidez (ou ignorância) e o medo. Com estes pilares, Portugal apresentava-se ao mundo, como o último dos grandes impérios europeus, um Portugal de Minho a Timor, que ignorava as pressões mundiais que visavam a descolonização e, como tal, imperial na administração e controlo de vários territórios ultramarinos, em África e não só. Como forma de controlo da sociedade, o Estado Novo apoiava-se na PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) e na Censura como instrumentos eficazes no combate a toda e qualquer forma de expressão e combate contra os princípios fixados pelo regime. A liberdade em Portugal, durante o Estado Novo, estava subjugada à ortodoxia política vigente do regime que se baseava no princípio do “pensamento único”.

Foi o 25 de Abril que libertou o povo das amarras de um regime de opressão, instaurando a democracia, regime político cuja primazia passa pela glorificação do mais “consagrado” de todos os valores: a liberdade, pondo termo, desde logo à Censura e à PIDE.

Foi no 25 de Abril que a insurreição de um grupo de militares, Movimento das Forças Armadas (MFA), permitiu derrubar a ditadura que durava à quase meio século em Portugal, país que, à data, se vangloriava oficialmente através do slogan “orgulhosamente sós”, um Portugal cuja geografia não está ao alcance da consequente mentalidade marcada pelo sentimento de inferioridade póstuma fundada no “irrealismo prodigioso da imagem que os portugueses (hoje) fazem de si mesmos” (Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade).

Foi no 25 de Abril que uma das Revoluções mais belas ficou baptizada como Revolução dos Cravos devido à simples e feliz coincidência de uma mulher do povo (D. Celeste), nas primeiras horas do dia, ter colocado cravos nos canos das espingardas dos soldados que mapeavam a cidade de Lisboa. A imagem colheu entre os demais populares e, dessa forma, correu o mundo, coroando a revolução pela sua pacificidade e generosidade.

Foi o 25 de Abril que pôs fim a Guerra Colonial que matou e maltratou dezenas de milhares de jovens portugueses e roubou anos de vida a centenas de milhares.

Foi o 25 de Abril que abriu portas à implementação de um regime democrático parlamentar baseado em eleições livres e para todos.

Foi o 25 de Abril que possibilitou a negociação da independência das colónias ultramarinas que originaram Estados Independentes da sua antiga metrópole.

Foi o 25 de Abril que iniciou um processo longo de desenvolvimento social, económico e cultural.

Foi o 25 de Abril que permitiu a institucionalização da Liberdade numa Constituição que apontou definitivamente um novo rumo para Portugal, centrado numa Europa tal como demonstrou a ulterior adesão, em 1986, do país à Comunidade Económica Portuguesa (CEE).

Tudo isto é inegável e nunca é demais lembrar. Comemorar o 25 de Abril é, aliás, um imperativo nacional, como defende, José Carlos Vasconcelos e nós nunca nos esqueceremos de comemorar de forma imperativa e necessária todas as acções que de uma forma mais ou menos explícita, contribuíram para que a Liberdade assolasse o nosso país numa bela madrugada de Abril.

 

25 de Abril: a Revolução é sempre hoje!

A memória do 25 de Abril deve ser sempre íntegra e verdadeira. O peso do passado da Revolução deve constituir, hoje, uma oportunidade diária de reflexão, não apenas sobre as condições sociais e políticas que fizeram emergir a Liberdade, como também e, essencialmente, as condições culturais e filosóficas que permitem a cada cidadão exercer a sua liberdade no sentido mais amplo que a palavra poderá assumir.

A liberdade é um todo orgânico e universal que a gaveta política do liberalismo ainda não conseguir compreender. A liberdade para nós, deve ser sempre intuída à luz do desvelamento dos constrangimentos estruturais que limitam o pensamento e a acção de qualquer indivíduo. A liberdade antes de ser política deve ser, sempre, consciência do eu perante si mesmo. O eu é o principal e único tribunal da razão que permite ao humano pensar a liberdade na acepção mais ampla que o conceito pode assumir. A liberdade, no sentido grego, pressupõe sempre uma democracia, mas as democracias actuais, estão cada vez mais longe de pressuporem a liberdade enquanto a-létheia, isto é, desvelamento da verdade, como vimos anteriormente.

O nosso colectivo inconsciente ainda não percebeu bem o valor da Revolução e a categorização imanente que o pensamento actual assume perante a evolução da sociedade. A Democracia actual apesar de festejar 50 anos ainda não tem na história um lugar estatizado e cristalizado, tal como tem a Monarquia, a Primeira República e até mesmo o Estado Novo que apoquentam a inquietação do nosso consciente colectivo. Sabemos o essencial que o «conhecimento do historiável» nos permite acerca destes períodos e das rupturas políticas e epistemológicas que os fizeram cair, mas da Democracia sabemos ainda muito pouco “enquanto identidade universal imaginária”. Eduardo Lourenço, dedicou parte da sua vida a reflectir sobre este tema e esclareceu-nos com muita mestria, saber e profundidade os pressupostos deste imaginário que falta “des-velar” na constituição daquilo é, hoje, ser português. Para o filósofo, ainda é muito recente e ousado dizer que o “europeísmo” acrescenta alguma coisa àquilo que nos sentimos ser, quando durante centenas de anos nos focamos, em termos colectivos, num Portugal com mais de 13 milhões de metros quadrados. Não é fácil quebrar as barreiras geográficas de um inconsciente colectivo para quem a Europa é um projecto que nasceu ontem e para o qual ainda é necessário encontrar um lugar no universo do «conhecimento historiável».

É necessário e premente, dentro desta indefinição, manter vivo o momento inaugural da Revolução, mas é imprescindível converter a época actual numa memória viva que erga esse imaginário ausente e que enterre urgentemente o imaginário que a mesma Revolução tentou sepultar para sempre com a mesma força com que mantenha vivos os princípios da liberdade de acção e pensamento que estiveram na sua génese.

Para além da reflexão destas camadas estruturais que permitem explicar a estrutura da liberdade onde nos inserimos, é necessário pensar a liberdade em si mesma, para além do contexto sociopolítico em que se insere a “nossa” revolução. Festejar a liberdade, hoje, é lembrar a glória inegável que as Forças Armadas Portuguesas tiverem na construção da nossa democracia, mas é também, e acima de tudo, assumir que nenhuma revolução pode ser concluída. Uma revolução concluída é um livro encerrado, um pedaço granítico de arqueologia, uma página de história e de exegese futura. Uma revolução concluída é a história realizada, em termos hegelianos, como projecto de realização dialéctico. A verdadeira Revolução de Abril é aquela que deve alimentar o dia-a-dia de cada um, uma atitude capaz de desvelar a “verdadeira natureza das coisas” e que coincide com a contínua procura pela Liberdade. Não aquela que conquistaram por e para nós (liberdade política) mas aquela que cada consciência humana conseguirá alcançar através de si mesma com a ajuda de toda a paideia cultural que a história da humanidade nos brinda em cada acto de manifestação livre.

Ao mesmo tempo não deixa de ser relevante a reflexão de António Barreto que nos apresenta Abril como “apenas” uma revolução militar que acabou no dia 25 de Abril de 1974. Ou seja, a sua missão foi derrubar o anterior regime, ponto. No máximo, para além disto, criar condições para que institucionalmente se pudesse instaurar uma Democracia. Com esta reflexão António Barreto pretende desresponsabilizar a inoperância vindoura como um “Abril por cumprir”. O MFA cumpriu a sua missão no dia 25 de Abril. Tudo o resto é trabalho nosso e a responsabilidade pela nossa liberdade, nunca poderá ser cobrada ao que falta cumprir de Abril, mas tão só e apenas a nós mesmos e a todas as estruturas que nos permitem ou não viver em liberdade.

A liberdade de que se fala aquando das celebrações do 25 de Abril é uma liberdade que, apesar de potenciadora, pode constituir-se como liberdade circunscrita a um tipo de idiossincrasias de cariz exclusivamente político. A liberdade deve, por isso, “libertar-se” das suas próprias amarras e discutir-se como “liberdade em si mesma” considerada não apenas enquanto conceito filosófico como também enquanto vivência prática e quotidiana. O 25 de Abril foi um só dia, mas a liberdade não se conquista num só dia. A liberdade é um processo complexo que implica uma actuação constante e permanente do ser humano, qualquer que seja o seu escalão etário. É por isso urgente que cada um de nós cumpra a liberdade prometida e dê continuidade à revolução iniciada com a esperança de que a revolução seja sempre qualquer coisa de misterioso: “não se sabe para onde se vai, mas segue-se em frente, por fidelidade a sonhos mais poderosos do que cada um de nós” (Eduardo Lourenço). A liberdade é um sonho que deve ser alcançado diariamente, no mais pequeno gesto de cada individualidade que a compõe.

Cumpre-nos aqui, mais uma vez, sublinhar o alcance da liberdade que defendemos numa época histórica em que a palavra liberdade é muitas vezes utilizada para definir contextos bastante diferentes daquele que nos preocupa. Fala-se hoje de liberdade política, liberdade sexual, liberdade de género, liberdade social, liberdade financeira, etc., mas em todos os casos, temos consciência de que todas estas “liberdades” se circunscrevem ao contexto de onde emergem: depois de alcançadas, fica sempre um vazio que alimenta eternamente o ser humano. E agora?

Inspirados por um dos arautos de Agostinho da Silva, “o ser humano não nasceu para trabalhar, nasceu para criar”, podemos hoje em dia, lançar uma pergunta provocatória: quantos de nós, hoje, acordam livres para criar?

A Liberdade que, mais uma vez sublinhamos, é uma Liberdade com “L” maiúsculo, enquanto condição de possibilidade que permite ao ser humano existir enquanto tal. Defendemos, pois, a Liberdade o Pensamento ou Cultural como única condição possível de onde todas as “outras” liberdades deveriam ser alicerçadas. As ciências, as artes, as letras e em especial, a Filosofia, devem assumir hoje, mais do que nunca, um papel crucial na formação de mentalidades pensantes e através das quais conseguiremos, progressivamente, alcançar o sentido íntimo da Liberdade enquanto condição de possibilidade do próprio ser humano. Desvelar o real, hoje, será seguramente, diferente, de desvelar o real na Hélade de Platão e de Aristóteles, mas o sentimento de verdade que inspira o ideal de Liberdade é exactamente o mesmo: retirar os filtros e as amarras que aprisionam o real e que não nos deixam ver para lá daquilo que nos aparece. Desvelar, hoje, é o verdadeiro desafio da contemporaneidade. Desvelar, hoje, é escolher estar ou não-estar presente de forma consciente em toda e qualquer forma de organização ou manifestação social, onde se incluem as pandémicas “redes sociais”. Ser livre hoje é um desafio mais complexo do que nunca, tarefa ou atitude que, simultaneamente, parece deixar de ser objectivo pessoal. Deixar que alguém escolha por nós, parece ser uma atitude mais confortável do que ter autonomia suficiente para fazermos as nossas próprias escolhas de forma livre e deliberada. Ser livre hoje é voltar a assumir as rédeas do pensamento e recusar toda e qualquer instrumentalização exterior perante um “eu” apagado e apenas à escuta. Ser livre é colocar o “eu” no mundo enquanto sujeito de pensamento e acção. Ser livre hoje é dizer que não ao sujeito-objecto em que “todos” se tornaram vítimas da sua própria imagem digitalizada. Ser livre hoje é apenas voltar a ser humano!

 

25 de Abril: antes e depois

Através da Revolução de Abril, deixamos para trás um país extremamente pobre, “amordaçado”, isolado e “orgulhosamente só”. Os ganhos convertidos em crescimento económico e social são inegáveis. Portugal mudou para melhor em quase todos os sectores da vida social (Pordata, a base de dados da Fundação Francisco Manuel dos Santos):

  • Nos últimos 50 anos a população aumentou 21%, 10 639 726 (2023)
  • A população está mais envelhecida: a percentagem de pessoas com mais de 65 anos passou de 10% (1973) para 24% (2022)

  • O número de estrangeiros a viver em Portugal aumentou 24 vezes e isso faz diminuir o problema da natalidade. 17% dos bebés nascidos em Portugal é filho de mãe estrangeira.

  • As famílias tornaram-se mais pequenas.

  • O acesso à saúde generalizou-se o que permitiu uma maior longevidade e qualidade de vida. A esperança média de vida passou de 67,7% (1973) para 80,7 (2020). A mortalidade infantil em Portugal, em 1974, era a pior da Europa (38 em cada 1000 crianças morriam à nascença) e apenas 38% dos partos era realizado em contexto hospitalar (1970). Actualmente não há sequer registo de partos fora do contexto hospitalar e Portugal é um dos países da União Europeia com menos mortalidade infantil: apenas 2,6 crianças em cada 1000 morrem à nascença, sendo que a média europeia se situa nos 3,3, em 2022. O número de médicos e enfermeiros por habitante, mais que triplicou.
  • A educação democratizou-se: em 1974, 25,7% da população era analfabeta, 64% eram mulheres. Actualmente, situa-se nos 3% e tende a baixar todos os anos. O acesso ao ensino superior, generalizou-se: 20% da população, hoje, sem formação superior, 60% são mulheres.
  • Valorização da mulher no contexto laboral, não apenas em termos quantitativos, mas também qualitativos.
  • As medidas de protecção social contra os mais vulneráveis, como idosos, pobres ou desempregados são incomparáveis.

  • Em 1970 68% das casa não tinham duche ou banheira, e cerca de 40% não tinha electricidade e rede de saneamento. Hoje, 98% das casas têm essas instalações.
  • O número de quilómetros cobertos em auto-estrada no país passou de 66 km em 1974 para 3.115 em 2022

 

25 de Abril: a autocrítica do presente como condição do futuro

Através da Revolução de Abril, deixamos para trás um país extremamente pobre, “amordaçado”, isolado e “orgulhosamente só”. O país mudou, como sabemos, muitos resultados positivos foram alcançados, mas Portugal (e o mundo em geral), confronta-se com preocupações reais, não apenas no âmbito político, que ameaçam seriamente a nossa liberdade. Não temos um antídoto milagroso que através da palavra, transforme cada indivíduo num ser absolutamente livre. Sabemos até que, do ponto de vista teórico, esse é um exercício impossível: não apenas pela indefinição que o conceito assume ao esbarrar com o humano, mas porque, a estrutura de evolução física e biológica do ser humano (re)cria um progresso na humanidade onde a dialéctica dos opostos estará sempre presente. Para sermos todos absolutamente livres a questão da liberdade deixava de ser uma questão e, com alguma certeza, podemos afirmar que enquanto houver humanidade a questão da liberdade será sempre uma questão, umas das mais fundamentais no panorama filosófico com que o ser humano sempre se deparará. Não temos receitas milagrosas, mas temos inteligência suficiente para detectar alguns problemas inerentes às sociedades contemporâneas transformando a sua análise e problematização numa matéria de interesse universal com vista a diminuir o fosso de uma Liberdade inalcançável com a perspectiva de uma sociedade mais justa, fraterna e diversa (note-se diversa e não igual).

2 principais problemas visam e comprometem directamente a nossa liberdade:

  • O extremismo do discurso político em Portugal e não apenas. Assistir, hoje em dia, a um debate parlamentar com o mínimo conhecimento da arte dialéctica, da heurística e da maiêutica é perceber que o único interesse que alimenta o discurso político é o bem sectário do partidarismo e não o bem universal do um país ou de uma nação. Ouvimos com atenção os discursos proferidos na Assembleia da República no âmbito das comemorações do 25 de Abril. No geral, todos mereceram palmas, todos estavam, de certa forma imbuídos de uma certa ideia de verdade com a qual se poderia trabalhar e melhorar o futuro de todos. Mas depois de cada discurso, belo à sua maneira, assistimos ao silêncio fragmentário e sectário de uns partidos em função da cor política e da pessoa que o proferiu e não do conteúdo das suas palavras. Enquanto a política for apenas a força bruta do sectarismo partidário o bem comum e a liberdade individual nunca atingirão a sua plenitude.
  • De forma complementar, o segundo problema reside da absoluta dependência – remetemos agora para o conceito grego da palavra αυτονομία – que a sociedade de hoje vive em relação à hipertecnologização e cujo expoente máximo se expressa nas denominadas “redes sociais”. A viciação de cada indivíduo a esta macroestrutura instalada está hoje ao nível da dependência das drogas ditas pesadas. Existem imensos estudos científicos que comprovam este facto, mas que não nos cabe agora explorar. A estrutura instalada cria um sistema oligárquico que reduz a liberdade de ser humano a um simples “utilizador” que dispõe o seu tempo (a sua navegabilidade) para alimentar uma máquina multimilionária de pouco mais de 5 déspotas. Todos reclamam falta de tempo, num mundo muito exigente, mas ninguém tem capacidade autocrítica para perceber que mais de 3 a 5 horas do dia de cada um já passado ao telemóvel e que, dessas horas, 80% do tempo é passado a fazer srcool por conteúdos que não controlamos. O telemóvel no bolso de cada um, quando conectado à internet, é uma das principais ameaças civilizacionais se nos confrontarmos com a necessidade de definição de categorias como ”humanidade” ou “civilização”. O telemóvel ocupa hoje o lugar do livro. Há séculos atrás, o livro não podia ser lido por qualquer um. O telemóvel e a viciação nas “redes sociais” ditou o fim da “civilização do livro”, a civilização que compõe o consciente estrutural de todas as gerações que compõem a humanidade desde a invenção da escrita até ao início do século XXI. Tudo na nossa sociedade (ou pelo menos nas sociedades urbanas ditas desenvolvidas) foi configurado em função de um padrão educacional baseado na “civilização do livro”, não apenas em termos políticos (parlamentares), como também em termos sociais, educacionais, geracionais, etc. Ao destruirmos a “civilização do livro” criamos um fosso inexplicável com o futuro e muitos dos problemas para os quais ainda não temos uma resposta, alicerçam-se nesta ausência de padrão entre uma humanidade estruturada pela importância que o livro assumia em todos os domínios de “evolução” e uma sociedade actual que ainda carece de fundamentação para si mesma. É neste terreno que nasce aquilo que muitas vezes se chama de universo pós-verdade e onde, a inteligência de alguns políticos, nomeadamente de extrema-direita, fundamenta grande parte do seu inconsequente discurso. Por esta razão, estes dois pontos, estão tão interligados.

A evolução da história não é uma linha contínua e ascendente de onde se navega sempre de um terreno “pior” para um terreno “melhor”. A hipermodernidade e a incorporação excessiva da tecnologia nas vidas do ser humano, transforma o chão de hoje num terreno verdadeiramente distópico. Um sociedade distópica é uma sociedade sem rumo, sem objectivo. Quando o objectivo, no seio do universo da pós-verdade, se baseia na ausência de critérios, numa espécie de hiperbolização inconsequente do pós-modernismo, a sociedade fica entregue a um arbítrio absoluto: o humano torna-se causa e consequência da entropia natural da termodinâmica; o comportamento deixa de ser avaliado pela causalidade da responsabilidade; a acção passa a ser sempre consequência de um pensamento vazio. Os vectores chave de avaliação ética do comportamento com a responsabilidade, a justiça, a solidariedade ou a tolerância, quer em termos individuais, quer em termos colectivos, são agora reduzidos à ausência absoluta de critérios inaugurais. Os pressupostos fundacionais do caminho civilizacional são paulatinamente destruídos. Os discursos vencedores já não são os discursos marcados pela consequência da palavra, pela inteligência e pela verdade que desejam alcançar. Os discursos vencedores hoje, reduzem a palavra ao essencial da compreensão do auditório cada vez mais ignorante, baseiam-se na emoção da imagem e não na inteligência da palavra, a verdade e a consequência foram substituídas pelo espectáculo da intriga pessoal. E o grande problema não é sequer o discurso ter mudado, é sim, o público a que se destina que, massivamente, sendo um público viciado na rapidez dos short do TikTok, das imagens do Instagram e das frases curtas do X, está mais apto a apoiar uma mentira com espectáculo em detrimento de uma verdade (amplamente) fundamentada. Todo o texto, ensaio, livro, que fundamente de uma forma estruturada uma determinada ideia, é hoje engolido pela rapidez de um scroll num feed completamente viciado e despido de conteúdo culturalmente interessante.

É necessário recuperar o espírito da utopia que alimentou a acção de cada militar naquela madrugada de Abril. É necessário que a nova geração de adultos tome consciência de que as acções de hoje são fundamentadas pelos milénios civilizacionais que nos antecedem. É necessário libertar a nossa sociedade das amarras de hoje.

Atrás vimos que o graus de analfabetismo em Portugal baixa de forma contínua todos os anos e tende a aproximar-se progressivamente do zero. Mas não nos podemos deixar enganar. Nem tudo é um mar de rosas. Nos últimos anos, foi amplamente publicado em Portugal, um dado que justifica o fim da aqui assumida “civilização do livro”: em 2021, 61% dos portugueses não leram um único livro.

Em 1963, Gastão Cruz publicava um livro intitulado A Doença, denunciando de uma forma subtil um país doente. Anos mais tarde, em 2014, sublinhava que o país continuava doente. Hoje podemos dizer, com alguma inspiração no escritor, que o despotismo fiscal e digital que vivemos é também cultural. E é o despotismo cultural que mais ameaça a nossa liberdade. Por isso, podemos afirmar com alguma tristeza que, infelizmente, continuamos a viver num país doente. As artes e a cultura em geral assumem um peso ridículo na orçamentação anual dos sucessivos Governos, em Portugal. Mas não nos deixemos enganar: se este orçamento fosse 10 ou 30 vezes superior, pouco mudaria. E porquê? As visões que a estrutura dominante tentam impor aos mais novos baseiam-se apenas numa meritocracia digital e financeira. O objectivo imposto a cada ser humano, hoje, reduz-se, no essencial, à figura do empreendedor sufocando assim a importância que a criatividade e a imaginação podem constituir na capacidade que o ser humano tem em CRIAR não apenas riqueza, mas também cultura, obras, pensamentos, ideias, essenciais, à evolução fundamentada de qualquer sociedade. Por isso não basta apenas aumentar o orçamento anual dedicado à cultura, é necessário acima de tudo, criar uma sociedade que tenha apetite e que assuma a importância desde cedo em alimentar hábitos culturais saudáveis.

Os artistas e os agentes culturais não podem ficar reféns da estrutura dominante que não serve nem é servida; as programações culturais não podem ficar reféns da lógica do mercado; o sucesso do conteúdo cultural e artístico não pode ser avaliado pela audiência e pelos likes do público. Em 2020, a Fundação Calouste Gulbenkian publicou um inquérito que apontava como principal factor para os portugueses não visitarem museus e/ou monumentos ou irem a outro tipo de espectáculos não tem que ver com o preço dos ingressos, mas sim, com a falta de tempo ou de interesse. Tempo e interesse! E onde está esse tempo e interesse? A resposta já foi dada acima. Se um português tem em média de 3 a 5 horas disponíveis para “navegar” nas redes sociais, é “normal” que não tenha tempo e interesse para visitar pelo menos uma vez por semana ou mês um museu ou monumento. É urgente combater esta cultura do facilitismo e ressuscitar o espírito utópico por uma sociedade cada vez mais humana.

 

A liberdade teórica de 2 jovens: um exercício provocador

Dois jovem perpassam, neste momento, como exemplos reais para pensarmos hoje o conceito de liberdade: um chamado Carlos, nascido em 1957 que, com 17 anos vividos em plena ditadura, alimenta um gosto ardente pelo humanismo existencialista e acorda a ler O Ser o Nada de JP Sartre e se deita a ler O Verão de Camus… apesar de coagido pelo espírito da censura tem muito a dizer, mas não pode escrever aquilo que verdadeiramente pensa.

Um outro jovem, de nome Francisco, nascido em 2006 e que, em pleno ano de 2024 viveu 18 anos em liberdade, acorda todos os dias viciado nas notificações que as redes sociais produziram no seu telemóvel e se deita todos os dias navegando ao ritmo de um feed que não controla. Pode escrever o que lhe apetece, seguramente haverá um “mercado” de gente que receberá o seu vazio de sentido. O que é mais produtivo para a evolução da humanidade: o pensamento de Carlos que nunca pôde ser escrito, ou a escrita de Francisco que talvez nunca tenha sido pensada? Qual dos 2 é mais livre: Carlos ou Francisco?

Como é possível falar em liberdade, hoje, quando temos uma geração de escravos millennials que não conseguem estar mais de 5 minutos sem confirmar a existência de uma notificação no telemóvel?

 

Pinceladas de esperança

Apesar de termos assumido que estamos muito mais do lado filosófico da problematização e não dos milagres e das respostas fáceis e rápidas, consideramos que há medidas que são concretas e fundamentais rumo à amplificação da liberdade de cada indivíduo.

Factores fundamentais sem os quais a liberdade colapsa:

  1. Jornalismo de qualidade e independente sem o qual nenhuma democracia subsiste. Numa altura em que se carregam mais de 500 horas de vídeo por minuto no YouTube, em que se assistem a milhões de horas por minutos de vídeos no TikTok e em que se partilham 66.000 fotos por minuto no Instagram, os algoritmos alimentados pela Inteligência Artificial já não ampliam apenas a riqueza bilionária dos respectivos donos, mas também de um conjunto de pessoas que através da manipulação influenciam directamente o conteúdo amplamente visualizado por cada utilizador. Idealmente, gostaríamos de propor que cada utilizador se tornasse acima de tudo num ser humano “não utilizador”, criador enquanto fundador ou espectador da arte humana, mas sendo essa uma tarefa humanamente impossível, remetemos para a importância de uma comunicação social de qualidade que faça realmente o trabalho de “verificação de factos” e que divulgue os conteúdos verdadeiramente importantes para o desenvolvimento pessoal e colectivo do ser humano.
  1. Exercitar os músculos do pensamento humano. Numa sociedade onde proliferam as imagens dos corpos ideais, amplamente exercitados e vitaminados, consideramos mais importante que nunca o exercício dos músculos do pensamento através da cultura e das artes. A leitura e a escrita ao longo do tempo constitui um factor fundamental na evolução saudável do cérebro humano. A cultura facilitista que este tipo de comportamentos finda com a escolarização deve acabar urgentemente. O cérebro humano deve ser estimulado ao longo da vida com desafios que vão para além da interpretação de um texto informativo ou técnico. A literatura em geral e a poesia em particular assumem aqui um papel fundamental. A qualidade dos textos é fundamental no estímulo das sinapses que asseguram e prolongam a nossa jovialidade. É necessário criar condições para que cada ser humano possa, ao longo da sua vida, contactar com literatura de qualidade e não apenas com conjuntos de frases que roçam o entretenimento e assim, envelhecer com qualidade.
  1. A Filosofia assume hoje, um papel decisivo na estruturação de uma sociedade com uma atitude crítica perante os constrangimentos da realidade e do próprio pensamento. A Filosofia deveria assumir um papel chave na base do sistema educativo, preparando os jovens e os adultos de hoje com ferramentas essenciais para uma vivência baseada nos ideais da liberdade. Com a Filosofia os mais jovens poderão perceber a especificidade e o lugar do ser humano no mundo, bem como os a prioris, as condições de possibilidade que permitem ao homem agir e pensar de uma forma mais livre e menos condicionada. Numa altura em que eclode o debate sobre a importância e os limites da Inteligência Artificial, a Filosofia tem um lugar fundamental na estruturação e compreensão daquilo que continuam a ser categorias exclusivamente humanas através das quais poderemos reger toda a qualquer interpretação dos novos dados desenvolvidos por todo e qualquer mecanismo digital de criação de conteúdos.
  1. O poder político deve convencer-se que os parlamentos já não constituem o centro gravítico das decisões individuais. O centro de decisão está hoje muito mais próximo do universo digital e hipertecnologizado como é o caso das ditas as redes sociais. É necessário e urgente regulamentar o uso de todo e qualquer mecanismo que escravize qualquer domínio da liberdade humana. Daniel Innerarity esclarece-nos esta dificuldade que a política tem hoje em adaptar-se ao universo da mudança hipertecnológica: os parlamentos, foram criados na lógica da modernidade segundo a qual a base da sua decisão controlava e moderava a sociedade. “Como se a mudança social estivesse à espera da deliberação dos Parlamentos. Numa época de alterações pequenas em sociedades estáveis, isto era útil. Numa sociedade como a nossa, pensar que os Parlamentos podem ser instâncias de controlo e de gestão da mudança social é algo ilusório. Portanto, a política precisa de desenvolver uma inteligência mais adaptativa e antecipatória das mudanças, se não quiser transformar-se naquilo que já é: um lugar de reparação de danos e de muito pouca antecipação de futuros.” A política deve ser, desde já, proactiva e regulamentar toda e qualquer ferramenta que reduza a liberdade individual, nomeadamente quando esta redução é encapuçada por algoritmos invisíveis no seio de uma sociedade cada vez mais sedenta e dependente do universo que digitaliza a nossa própria existência. Se os seres, individualmente, não conseguem defender-se da oligarquia tecnológica que os controla e torna dependentes, deverá ser o estado a regulamentar esta dependência em nome da liberdade que cada um poderá usufruir no futuro.
  1. Numa sociedade que maximiza a urgência do empreendedor que há dentro de cada um, como se todos nós tivéssemos de ser empresários de sucessos para sermos considerados seres de sucesso em função do estatuo que a sociedade imprime, é necessário e urgente incentivar, através da educação infantil, que as capacidades criativas e artística adquiridas não são bilhetes de passagem para o mundo dos adultos. A capacidade criativa e crítica que há em cada ser humano, deve ser sempre privilegiada e a escolarização não pode ser apenas uma processo que dura dos 6 aos 24 anos, momento a partir do qual a regressão cognitiva parece tomar conta de cada profissional trabalhador. A educação, a formação, a evolução cognitiva é um processo vital inerente ao desenvolvimento humano, independentemente da idade e, como tal, deve ser sempre estimulado em nome da liberdade de cada um. Sem estímulo criativo e intelectual, o ser humano jamais poderá exercer a sua liberdade. Filosofia, Poesia, Literatura e Arte em geral, sem esquecer a importância que as Ciências assumem no desenvolvimento social, são e serão sempre vectores chave e fundacionais daquilo que podemos ainda chamar Liberdade. Sem eles a sociedade continuará a evoluir, seguramente, o ser humano constituirá uma sociedade pós“livro”, no entanto, a redefinição dos conceitos será tão premente que a ausência de fundamentação acabará por conduzir o humano à ausência de si próprio. Será um outro humano, um humano que dificilmente teremos capacidade para conhecer.

Na perspectiva de pensar a Revolução de Abril com um caminho de liberdade virado para dentro do “eu”, Agustina Bessa Luís, em Crónica do Cruzado Osb, referiu-se assim a este período emergente: “Não se tratava de uma revolução no sentido que cada um desejava dar-lhe, como triunfo de uma classe sobre outra, por exemplo, mas de algo talvez mais profundo, como o fim de um medo milenar e do desprezo de si”. Juntos, continuaremos, em nome da liberdade, esta luta infinita contra o medo e o desprezo por todo e qualquer categoria que limite o estado de consciência individual.

Viva a Liberdade (de todos)!

 

14 de Julho de 2024


Ivo Aguiar

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Sobre o Autor

Ivo Aguiar

Leitor omnívoro. Escritor independente. Filosofia, Poesia e Arte em Geral.

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