arte, espiritualidade e verdade

Os artistas arrancam do Ser aquilo que não estando lá, está lá sempre e para sempre. O acto de criação artística é uma das principais motivações de análise da estética, enquanto disciplina filosófica. No entanto, aquilo que a estética procura traduzir em palavras, o artista vive diariamente, não apenas ao nível do pensamento, como também da fisicalidade que o move a uma acção específica: pincelada a pincelada, palavra a palavra, nota a nota, na criação os artistas pressentem a representação de algo que não é imediato ou primeiramente visível, mas que, no fundo está sempre lá (desde sempre e para sempre) na imersão do universo profundo de um “ainda” nada. O artista convoca o Ser e converte-o numa outra forma de Ser. O universo da criação não é, por isso, terreno exclusivo da estética. O universo da criação é, primordialmente, um universo de reflexão metafísica de toda a ontologia.

O universo da criação é uma enorme tensão entre 2 pólos ontológicos: o nada e o infinito. Se por um lado, o artista nasce com uma sensibilidade desmedida para acolher o vazio enquanto território de escuta, por outro lado, são as possibilidade infinitas que o “des”limitam quem provoca a sua pulsão criativa. Acolher o vazio enquanto condição de possibilidade de escuta e criação pensando o universal e o infinito é sinónimo de transformar o nada em algo ontologicamente significativo: a obra. A obra de arte é, nessa medida, um elo de ligação entre a ontologia e a antropologia: pelo humano, e através da arte, o Ser, desdobra-se continuamente em infinitos modos de Ser. Podemos mesmo arriscar dizer que o artista dá Ser ao Ser. Vejo a criação com um processo de centrifugação dialéctica que coloca o homem entre o nada e o infinito. O artista, tão justamente representado pela figura do poeta, é um veículo desta relação. Perante o Ser, mergulha no universo ontológico desta dialéctica e traduz o vazio em algo “novo”. O poeta perscruta o silêncio do universo e o eco que este silêncio provoca na consciência artística do humano. Nesta relação ontológica que imana do acto de criar, a obra é o que “antes” (da criação) ainda não era e isso abre-nos uma janela exegética incrível ao nível da arte: a obra de arte não tem um significado definido à partida como tem um projecto de engenharia, por exemplo. A obra de arte, ao situar-se no patamar ontológico, é desde logo um modo de ser cujo significado pode ser interpretado na medida em que criador e espectador acertam «linguagens» e potenciam o sentido na maximização da uma liberdade maior. A arte é, nesta perspectiva, uma acendalha eterna da liberdade humana.

Perante o arauto dos tempos em que a tecnologia se torna omnipresente, parecendo querer, cada vez mais, destronar a criatividade, substituindo-a por uma perfeição técnica, infalível e absoluta, é imperativo olhar a Arte como instrumento necessário à Liberdade que o Ser Humano anseia perante a sua essência. O caminho da criatividade é um caminho dinâmico de elasticidade, contrário à rigidez organizacional do pragmatismo da técnica. A fragilidade humana, a dúvida e a incerteza perante a realidade, são dimensões que alimentam a criatividade e não cabem na perfeição da fisicalidade técnica. Os algoritmos digitais baseiam-se na relação entre o universo visível e a conversão das nossas singularidades numa linguagem monista que traduza essa visibilidade. A arte alimenta-se do contrário. Numa visão diametralmente oposta, a arte alimenta-se do invisível, do indizível, do inaudível, do imortal, do eterno… vectores que conectam o humano ao infinito e o resgatam do vazio (pré)criativo. Por tudo isto, podemos dizer que existe uma forte correlação entre a Arte e a Espiritualidade. Não no sentido pragmático que a religiosidade (ou o universo das religiões) hoje opera no mundo, mas no sentido etimológica da palavra religare, ou seja, de voltar a ligar aquilo que, por alguma razão ficou desunido – o nada e o infinito, em termos de oposição dialéctica. Não será a vida uma longa jornada de tentativa de união de todo um conjunto de pontas que nos parecem soltas? Unir as pontas é aquilo a que o humano apelida de “dar sentido” à vida e, numa altura em que o pensamento livre parece substituir-se pelo pragmatismo de uma inteligência dita artificial, nada melhor do que a Arte para recentrar o humano na essência daquilo que o constitui.

O poeta José Tolentino Mendonça (também cardeal) apresenta-nos a literatura, e a poesia em particular, como elemento-chave para a salvação do humano:

“O discurso teológico por excelência é feito pelos poetas”

“A poesia é uma arte da escuta. Nesse sentido, a poesia é um contributo fundamental para a audição do dizível e do indizível, do visível e do invisível”

“Penso que a função da poesia é reabilitar o silêncio, é perfurar o ruído… até encontrarmos camadas subterrâneas de silêncio”

A poesia leva-nos a integrar a ignorância. Os poemas não dizem o que sei, dizem muitas vezes o que eu não sei. O que eu ainda não sei. O que me falta do caminho a percorrer. São muito mais a fratura, o espaço da falta, o tempo da ausência do que propriamente o lugar epifânico de uma presença

© José Tolentino Mendonça, Uma Beleza que Nos Pertence, Quetzal

A certeza é a inimiga mortal da tolerância e José Tolentino Mendonça aponta-nos um conjunto de aforismos capitais para perceber a arte (e a poesia em particular) como fundamental no caminho de compreensão do humano na sua relação com a liberdade. A poesia como espaço do que ainda não sei, um espaço infinito que é simultaneamente um vazio por preencher, um vazio que pode ser habitado. Aquilo que, com mestria, António Marina, apelidou de ocorama, onde a ignorância, a dúvida e a incerteza são partes constituintes de um universo estético e, ao mesmo tempo, condições de possibilidade de uma ética fundamentada pela tolerância. Ao situar-se num jogo de linguagem baseado da dúvida e na incerteza de um ainda-não, a arte pode ser, simultaneamente, um jogo de abertura ao “outro” e, nesse sentido, por via da tolerância, revelar-se parte de uma ética necessária e fundamental.

Mas não é apenas com a ética e com a espiritualidade que a Arte se relaciona intimamente. Diziamos, no início, que na criação os artistas pressentem a representação de algo que não estando lá, está lá sempre e para sempre. Esta definição de uma latência presente e ausente simultaneamente, faz lembrar a noção de verdade que os filósofos nos deixaram a perceber na Antiguidade Grega. Na realidade, a noção de beleza, liberdade e verdade, são conceitos intimamente ligados quando analisamos a etimologia de certas palavras gregas. O problema da verdade como liberdade é, simultaneamente, o problema da liberdade como verdade. Verdade deriva do grego Alétheia (ἀλήθεια) e significa desvelamento ou não-ocultação. Para os gregos existe uma absoluta correspondência entre a realidade e a verdade, ou seja, a verdade é tudo aquilo que não é oculto, isto é, a realidade. (A+létheia, Não+Oculto).

Para um grego, o caminho da liberdade é o único possível, o único que indica ao homem o encontro com a realidade tal como ela é, ou seja, despois de desvelada. O caminho da verdade é, portanto, o caminho da libertação daquilo que está oculto, o caminho da luz. O caminho que permite tornar visível aquilo que, por alguma razão, está “por” descobrir. Foi Heidegger, na sua obra Ser e Tempo, quem mais se dedicou à análise etimológica da verdade, no sentido grego de A+létheia. Esta designação de desvelamento é, de certa forma, contrária ao sentido da verdade comumente assente na empiricidade atomista dos factos que considera a verdade como um estado quase objectivo e descritivo de tudo o que já está “des”velado. Não nos podemos esquecer, todavia, que para os gregos, os dois lados da balança (oculto, não-oculto) estavam intimamente ligados, conectados entre si. A liberdade é caminho através do qual o ser humano consegue, de certa, forma compreender esta ligação e, com isso, conhecer melhor o mundo que o rodeia e a si mesmo. Heraclito, filósofo grego nascido em Éfeso no ano 500 aC, tinha uma máxima trazida até nós através de um fragmento que esclarece este ponto de análise da noção de verdade:

A verdadeira natureza (o ser, a verdade) das coisas gosta de ocultar-se

PHYSIS PHILEI KRYPTESTHAI
Natureza/Ser gosta ocultar(se)

 

Physis e Kryptesthai apesar de diferentes tendem uma para a outra. Estão, de certa forma, unidas e isso fragiliza a questão da verdade. Cabe ao ser humano, através da Philei, estabelecer a ligação entre estes opostos e, desta forma, alcançar ou aproximar-se do ser das coisas, a sua verdadeira natureza. Este é o longo caminho da verdade que é, simultaneamente, o caminho da liberdade. A acção humana livre é como uma gota de lixívia numa banheira de água negra: a sua intensidade varia em função do empenho, mas no fim tudo tende à forma original, e a natureza (a verdade) tende a ocultar-se novamente, num exercício eterno.

O caminho da verdade, no humano e neste sentido pode ser o caminho da criação, o caminho que faz o humano juntar as pontas soltas entre o vazio e o infinito, entre o invisível que gosta de se ocultar e a procura que se molda eternamente. Um exercício eterno: o Ser quanto mais se revela, mais se oculta. O exercício da criação finda no dia em que o humano julgar que encontrou a verdade enquanto certeza absoluta, seja ela estética, ética ou gnoseológica. O exercício da criação consiste no jogo eterno de uma representação de algo que não estando lá, está lá sempre e para sempre. Esse é o verdadeiro sentido da criação: o ímpeto que nos move na procura de uma pulsação do Ser que teima em ocultar-se, desde sempre e para sempre.

Com os Gregos, conseguimos não apenas ver uma aproximação entre a noção de verdade e a noção de liberdade, como também ligações entre estas noções e o inefável universo da criação artística.

[texto publicado sem qualquer revisão ortográfica e escrito de acordo com antigo acordo ortográfico]


Ivo Aguiar

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Sobre o Autor

Ivo Aguiar

Leitor omnívoro. Escritor independente. Filosofia, Poesia e Arte em Geral.

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